Os primeiros dias de um mandato têm uma energia singular, marcada por um deslumbramento que desafia até Freud. Líderes carregam o brilho da vitória, equipes estão motivadas, e a população deposita esperanças em um governo que promete transformar a realidade. É um período onde tudo parece possível, uma fase que muitos chamam de "lua de mel". Nesse momento, Executivo e Legislativo costumam estar alinhados, pesquisas refletem alta aprovação, e o otimismo prevalece. Contudo, como toda lua de mel, essa também tem um fim. A realidade, com seus desafios e limitações, começa a se impor, exigindo que o governo transcenda o encantamento inicial e se transforme em ação concreta.
Em meus 20 anos de experiência na gestão pública – como prefeito por oito anos e secretário em diversas cidades por outros oito –, vivenciei essa transição repetidas vezes. Por mais idealizado que seja o início de um mandato, o encantamento inevitavelmente chega ao fim. Secretários, assessores e servidores que pareciam exemplares durante a campanha começam a mostrar limitações. O próprio prefeito, frequentemente visto como uma figura quase onipotente, descobre que seu poder e controle são mais limitados do que imaginava. Para alguns, essa desilusão é desanimadora; para outros, é uma oportunidade de ressignificar e reconstruir. A grande questão é: diante desse cenário, desistimos ou transformamos a desilusão em força para seguir adiante?
O deslumbramento inicial precisa acabar. Governar é muito mais do que ocupar um cargo; é assumir a responsabilidade de dar respostas concretas aos anseios da sociedade. Não há espaço para ilusões prolongadas quando o que está em jogo são as necessidades reais da população. Nesse sentido, a liderança pública exige abandonar o brilho superficial do poder e focar na entrega de resultados, reconhecendo que o verdadeiro impacto de um governo está na capacidade de agir com eficácia e empatia diante dos desafios que surgem.
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Tancredo Neves em Brasília-DF / Foto: Daniel Quoist |
Tancredo Neves, um dos maiores líderes da história política brasileira, costumava repetir uma frase que carregava grande sabedoria: "A política é a arte do possível." Atribuída a Otto von Bismarck, essa expressão reflete a essência do governar. Para Tancredo, governar era transformar limitações em avanços concretos, com pragmatismo e sensibilidade. Ele compreendia que a política não é feita de sonhos inalcançáveis, mas da habilidade de encontrar soluções reais dentro das condições dadas. Essa visão, que unia idealismo e realidade, permanece uma inspiração para todos que acreditam na capacidade transformadora da liderança pública.
Tony Blair, ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, trouxe uma reflexão que ilustra bem essa realidade. Em agosto de 2023, no Congresso do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), realizado em Belém do Pará, ele compartilhou uma experiência reveladora de sua trajetória. Blair contou que, no início de seu mandato, acreditava que sua assinatura em um documento seria suficiente para resolver problemas ou implementar políticas públicas. Com o tempo, porém, percebeu que isso nem sempre era verdade. “Things simply don’t happen, and it’s staggering” (as coisas simplesmente não acontecem, e é espantoso), afirmou ele, surpreso com a resistência da realidade diante de suas decisões. Se isso ocorre com um líder de uma das maiores potências globais, imagine o que não acontece com um prefeito de uma cidade no interior do Brasil, lidando com recursos escassos, burocracia e limitações estruturais.
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Tony Blair no Pará — Foto: Reginaldo Gonçalves/TV Liberal |
Esse momento de transição não é apenas sobre a desconstrução de idealizações. É também sobre amadurecimento – da equipe, do líder e do próprio conceito de gestão. Governar exige enfrentar limitações de todos os tipos: orçamentárias, burocráticas e humanas. Como bem apontou Max Weber, o exercício da liderança política demanda um “longo e obstinado trabalho” para transformar o possível em real. Essa perseverança é o que diferencia líderes que desistem ao primeiro sinal de dificuldade daqueles que conseguem inspirar suas equipes e transformar a adversidade em aprendizado.
No entanto, esse período pode ser emocionalmente exaustivo. Muitos membros da equipe, especialmente aqueles na linha de frente, tendem a desanimar ao perceberem que o prefeito não é tão infalível quanto imaginavam, ou que as mudanças prometidas exigem um esforço gigantesco para serem concretizadas. Contudo, esse é o momento em que a fraqueza pode se transformar em fortaleza. Reconhecer que ninguém é perfeito – nem o prefeito, nem os secretários, nem os servidores – é o primeiro passo para construir uma relação mais autêntica, baseada no respeito mútuo e na confiança na capacidade de crescer juntos.
Mais do que isso, é preciso unir esforços além da equipe interna. Como afirmou Hannah Arendt: "O poder é o que mantém a existência da esfera pública, o espaço potencial de aparência entre homens que agem e que falam. [...] O poder surge entre os homens quando eles agem juntos e desaparece no momento em que se dispersam" (Arendt, 1965, p. 200). A gestão pública só se fortalece verdadeiramente quando há uma conexão entre a classe política, a sociedade e os diversos atores que compõem a vida pública. O isolamento ou a fragmentação entre esses grupos enfraquece o mandato e compromete o objetivo maior de atender às demandas coletivas.
A "lua de mel" característica dos primeiros meses de mandato é um marco inicial valioso, mas transitório. Sua efemeridade reforça o verdadeiro sentido da gestão pública: transcender o entusiasmo inicial para construir uma admiração sólida e duradoura. Quando o brilho superficial se dissipa, emerge o desafio de ressignificar o governo, substituindo o encantamento por um respeito fundamentado na ética, na resiliência e na disposição para enfrentar desafios coletivamente.
Os primeiros dias de um mandato são um rito de passagem – um período em que ilusões dão lugar ao realismo, mas também à possibilidade de construir algo mais autêntico e duradouro. É nesse momento que o governo deixa de ser uma promessa e se transforma em ação. Apesar das limitações individuais, é no esforço conjunto que reside a força necessária para fazer a diferença.
A lua de mel acaba. O encantamento passa. Mas é na ressignificação, no reencontro com o propósito e na valorização da humanidade que um governo encontra sua verdadeira grandeza. Afinal, a política não é a arte do impossível; é a arte de fazer entregas, mesmo enfrentando limitações - e, mesmo assim, construir, dia após dia, uma realidade mais digna e justa para todos.
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1965.
ARENDT, Hannah. Ich will verstehen. LUDZ, Ursula (Ed.). München: Piper, 1996.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1999.
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