A recente conclusão das eleições municipais de 2024 destaca um desafio fundamental para o Estado de Direito: como garantir que a alternância de poder, inerente ao regime democrático, ocorra sem comprometer a continuidade dos serviços públicos essenciais? Esse tema é central, pois a interrupção de serviços essenciais impacta diretamente a vida da população e pode abalar a confiança nas instituições públicas. Embora a alternância de poder seja um sinal de vigor democrático, o período de transição entre governos impõe desafios administrativos significativos que, se malconduzidos, podem desestabilizar a administração pública e comprometer o interesse da sociedade.
Esse contexto reforça a relevância do tema: com o fim das eleições municipais, prefeitos eleitos e suas equipes enfrentam o desafio de planejar uma transição ética, eficaz e ordenada, apoiada pelos princípios da continuidade, da impessoalidade e pelo accountability, que busca assegurar que a alternância político-administrativa ocorra sem prejuízos à população.
Contexto e Relevância da Transição Governamental
O período de transição, iniciado dias após a divulgação dos resultados eleitorais e estendendo-se até a posse do novo gestor, envolve mais do que uma simples passagem de responsabilidades políticas. Souza, Leite e Castelo Branco observam que a transição deve ser compreendida como um processo que envolve múltiplas ações e interações institucionais: “A transição não se refere a um período, mas a um processo e, como tal, não coincide necessariamente com o lapso temporal que vai da eleição à posse” (SOUZA; LEITE; CASTELO BRANCO, 2008, p. 44).
Tal processo exige colaboração ativa entre o prefeito eleito e o gestor em exercício, para assegurar que projetos, convênios, políticas públicas e compromissos financeiros sejam mantidos de maneira contínua e em conformidade com as obrigações institucionais. Esse processo é imperativo para a preservação de direitos, a proteção de bens e interesses públicos e a operação eficiente da máquina administrativa, sempre orientada aos objetivos do Estado. Souza, Leite e Castelo Branco (2008, p. 48) ressaltam que “a transição é fato político, não restam dúvidas, mas também é inerente à relação de administração pública e, como tal, deve ser institucionalizado para resguardar direitos, proteger bens e os negócios públicos, garantir solução de continuidade administrativa e manter a máquina pública na trilha dos seus objetivos fundamentais”. Além do aspecto político, a transição configura-se como um processo administrativo essencial para a estabilidade e a continuidade da administração pública.
No Brasil, a regulamentação do processo transicional de governo foi consolidada em 2002 com o advento da Lei Federal nº 10.609, que representou um marco republicano na passagem presidencial de Fernando Henrique Cardoso para Luís Inácio Lula da Silva. A lei passou a exigir que o presidente em exercício e sua equipe garantam ao presidente eleito a estrutura e o acesso às informações necessárias para o planejamento do mandato, além da continuidade dos programas e políticas públicas. A lei determina, ainda, a criação de uma equipe de transição, permitindo que o novo governo compreenda o funcionamento dos órgãos e entidades da administração pública, preparando-se para assumir o poder eficazmente.
Alguns estados também instituíram regulamentações específicas para o processo de transição, como é o caso de Minas Gerais, que possui a Lei Estadual nº 19.434/2011, a qual determina a formação de uma equipe de transição e a garantia ao acesso irrestrito às informações sobre as contas públicas e programas em andamento. Para os municípios que ainda não possuem regulamentação própria sobre a transição de governo, o Direito Administrativo brasileiro autoriza a aplicação, por analogia, das legislações federal e estaduais sobre o tema.
Princípio da Continuidade Administrativa e sua Interação com Outros Princípios
Nesse sentido, o princípio da continuidade dos serviços públicos configura-se como um dos pilares da administração pública brasileira ao assegurar que os serviços essenciais permaneçam ininterruptos, independentemente das mudanças político-eleitorais. Denominado também como princípio da permanência, estabelece que a prestação de serviços essenciais não deve ser impactada por disputas políticas ou pela alternância de poder, pois representa uma responsabilidade permanente do Estado para além de seus mandatários. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “a continuidade da atividade administrativa é princípio que se impõe e prevalece sobre quaisquer circunstâncias” (MELLO, 2006, p. 77).
Conforme observa Luiz Antonio Rizzatto Nunes (2012, p. 313), “o serviço público é bem indisponível, sendo prestado pelo Estado e seus agentes por força de lei”, de modo que esses agentes “não podem dispor do serviço público: são obrigados a prestá-los para atingir o interesse público irrenunciável.” Esse entendimento reforça que o princípio da continuidade transcende os gestores, atribuindo ao Estado a responsabilidade de assegurar a prestação ininterrupta dos serviços públicos, independentemente de mudanças de liderança. Essa obrigatoriedade é fundamental, pois, ao evitar a interrupção dos serviços, o Estado prioriza o interesse coletivo sobre disputas políticas e oscilações administrativas típicas dos ciclos eleitorais.
Esse princípio decorre da "indisponibilidade dos interesses públicos" e da obrigação do Estado de prestar serviços essenciais de forma contínua e ininterrupta (NUNES, 2012, p. 313). Dessa forma, durante a transição, é imprescindível que a nova gestão receba informações completas e atualizadas sobre o funcionamento dos serviços, assegurando que a continuidade não seja comprometida. Celso Antônio Bandeira de Mello destaca que a "atividade administrativa" possui uma “natureza contínua e ininterrupta”, sendo vedado ao Poder Público interromper a prestação de serviços, em observância ao princípio da continuidade (MELLO, 2006, p. 77). Assim, mesmo com a alternância de agendas políticas e mudanças de prioridades, o princípio da continuidade garante que os serviços essenciais permaneçam sendo prestados com assertividade.
Outro princípio que complementa a continuidade dos serviços públicos é o da impessoalidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, que assegura que a administração pública seja conduzida de maneira impessoal, sem favorecimentos pessoais ou discriminações político-partidárias. A impessoalidade é fundamental durante as transições de governo, pois exige que o foco da administração esteja no interesse coletivo e não em preferências personalistas. O respeito a esse princípio garante que a transição ocorra de forma ética, sem que a nova gestão enfrente barreiras para dar continuidade aos serviços, além de iniciar o planejamento de seu programa de governo chancelado nas urnas.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 110):
(...) a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.
O conceito de accountability, ou prestação de contas, fiscalização e controle, é igualmente indispensável no processo de transição, porquanto exige que os gestores públicos apresentem de forma transparente o diagnóstico elaborado pela comissão de transição, garantindo que a sociedade tenha acesso às informações com clareza e detalhamento acerca da situação da administração pública. Esse preceito está intrinsecamente conectado ao Princípio da Continuidade dos serviços, já que os gestores que deixam o cargo têm a obrigação de transferir todas as informações necessárias para assegurar a manutenção dos serviços e o bem-estar da população.
Responsabilidades Jurídicas na Transição Governamental
A jurisprudência brasileira tem consolidado o entendimento de que a transição inadequada de governo, especialmente quando realizada com má-fé e dolo, pode configurar ato de improbidade administrativa. Um exemplo encontra-se na decisão do Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE), em sede de Reexame Necessário e Apelação Cível, na qual o ex-prefeito do município de Palmácia foi condenado por omitir-se nos deveres inerentes a uma transição adequada, violando princípios fundamentais como honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. De acordo com a relatora, desembargadora Rosilene Ferreira Facundo, as provas documentais evidenciaram ilegalidades que revelaram o descaso com a coisa pública e a prática de atos lesivos ao interesse coletivo. Ao manter a sentença de condenação por improbidade administrativa proferida em primeiro grau, a 3ª Câmara de Direito Público reforçou que, ao agir de forma desidiosa e dolosa, o gestor público compromete não apenas a continuidade administrativa, mas também a confiança da sociedade na administração pública.
Em consonância com essa decisão, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), no julgamento da Remessa Necessária nº 0001441-91.2016.8.10.0069, reafirmou o direito da equipe de transição ao acesso a documentos e informações financeiras essenciais, mesmo na ausência de legislação local. A decisão baseou-se nos princípios constitucionais da moralidade e da continuidade dos serviços públicos, consolidando o entendimento de que a transparência e o acesso à informação são indispensáveis para uma transição de governo ética e responsável. O Tribunal destacou que a Lei nº 12.527/2011, a Lei de Acesso à Informação (LAI), regulamenta o direito constitucional dos cidadãos ao acesso às informações públicas, tornando imperativo que o Executivo cessante disponibilize para os novos gestores todos os documentos de interesse coletivo necessários para garantir a continuidade administrativa. No caso em questão, a negativa do gestor de fornecer tais informações foi considerada uma violação ao direito líquido e certo do impetrante, comprometendo a normalidade e a transparência do processo de transição.
A continuidade dos serviços públicos, aliada à supremacia do interesse público e fundamentada nos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e transparência, é essencial para garantir a estabilidade do Estado e proteger os interesses coletivos durante a transição de governo. Esses preceitos asseguram a prestação ininterrupta dos serviços essenciais e impõem uma responsabilidade ética aos gestores, que devem fornecer as informações e estruturas necessárias para manter a eficiência da administração pública. Além de ser uma obrigação legal, a transição de governo representa o início do planejamento da nova gestão, permitindo que a próxima equipe entre preparada para dar continuidade, aprimorar e implementar seus próprios projetos e políticas públicas. Dessa forma, cada ciclo de alternância de poder revela-se como um aprendizado contínuo da democracia, uma oportunidade de fortalecer o compromisso com o bem público e reafirmar a confiança nas instituições. Cada transição traz lições valiosas para a construção de um Estado mais justo, responsável e comprometido com a continuidade e eficiência no atendimento às demandas da sociedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 nov. 2024.
BRASIL. Lei nº 10.609, de 20 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a instituição de equipe de transição pelo candidato eleito para o cargo de Presidente da República e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 21 dez. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10609.htm. Acesso em: 09 nov. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Ceará. Apelação Cível nº XXXXX-62.2015.8.06.0139. Relatora: Desembargadora Rosilene Ferreira Facundo. Julgado em 19 nov. 2018. 3ª Câmara de Direito Público.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Maranhão. Remessa Necessária nº 0001441-91.2016.8.10.0069. Relator: Desembargador José Jorge Figueiredo dos Anjos. Julgado em 27 jun. 2019. 6ª Câmara Cível.
EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. O Direito de Oposição Política no Estado Democrático de Direito. 2006. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/recife/politica_lilian_emerique.pdf. Acesso em: 09 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Lei Estadual nº 19.434, de 11 de janeiro de 2011. Institui a obrigatoriedade de formação de equipes de transição governamental no Estado de Minas Gerais e dá outras providências. Diário do Executivo: Belo Horizonte, MG, 12 jan. 2011. Disponível em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-nova-min.html?incompleta=True&numero=19434&ano=2011. Acesso em: 10 nov. 2024.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. Saraiva, 2012.
SOUZA, A.; LEITE, G.; CASTELO BRANCO, M. Transição de governos nos municípios: apontamentos teóricos, roteiro de trabalho e orientações práticas para prefeitos e comissões de transição. Belo Horizonte: Biográfica, 2008.