segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Sombra do Extremo: A Ascensão da Extrema-Direita na Europa e as Ameaças ao Estado Democrático de Direito no Brasil

* Artigo originalmente publicado no Conjur em 30/06/2024.

Alisson Diego Batista Moraes[1]

 

"A democracia não morre com um estrondo, mas com um sussurro." 

(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 9).

 

    Em 2018, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram Como as Democracias Morrem, um livro que rapidamente se tornou um best-seller ao expor com clareza perturbadora como as democracias liberais são frágeis e podem desmoronar não por meio de golpes dramáticos, mas mediante um processo lento e silencioso interna corporis. A obra revela como líderes eleitos podem minar as instituições que sustentam a democracia, subvertendo os processos que deveriam protegê-la.

    Na época, a obra já soava um alarme sobre a fragilidade das democracias, especialmente após as vitórias eleitorais de Viktor Orbán, Narendra Modi, Rodrigo Duterte, Benjamin Netanyahu, Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro. Nem mesmo os autores, no entanto, poderiam prever que apenas seis anos depois a situação global se tornaria ainda mais desafiadora, mesmo que Bolsonaro e Trump não estejam no comando de seus países. Em 2024, as democracias liberais continuam na berlinda, enfrentando dificuldades crescentes na Europa e em outras partes do mundo. As recentes eleições para o Parlamento Europeu, que resultaram no triunfo de partidos de extrema direita em vários países, alarmaram aqueles que viam a Europa como o principal modelo do mundo ocidental.

 

    A Fragilidade Democrática e a Ascensão da Extrema-Direita

     Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, destacou durante o Brazil Forum UK 2024 – evento realizado na Universidade de Oxford, no Reino Unido – que "a democracia vive uma prova de fogo com a ascensão da extrema-direita e a captura do sentimento religioso"[2]. Suas palavras ecoam uma preocupação global crescente com o aumento do extremismo e a fragilização dos valores democráticos, um fenômeno claramente observável também na Europa.

    As eleições parlamentares europeias exemplificam a dinâmica apontada por Levitsky e Ziblatt, bem como as preocupações ressaltadas pelo presidente do STF em Oxford. Partidos de extrema-direita, valendo-se do descontentamento popular com questões como imigração, crise econômica e percepções de perda de identidade nacional, alcançaram vitórias significativas. Em pelo menos dois países europeus, o crescimento da extrema-direita é ainda mais preocupante.

    Na França, o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, emergiu com grande força política, desencadeando uma crise que levou o presidente Emmanuel Macron a antecipar as eleições legislativas nacionais. A expectativa é de que Macron terá de dividir o governo com a maioria extremista nos próximos anos, devido às peculiaridades do regime semipresidencialista francês.

    Na Alemanha, a Alternativa para a Alemanha (AfD) expandiu sua presença no Parlamento Europeu. Este crescimento é impulsionado por vários fatores, incluindo a crise energética e a insatisfação com as políticas do governo de Olaf Scholz. A dependência da Alemanha do gás russo e o aumento dos custos de energia abalaram a confiança na liderança de Scholz, criando um ambiente propício para que a AfD ampliasse seu apoio eleitoral. A crise, no entanto, é muito mais sistêmica do que contingencial e configura um cenário de erosão democrática global diagnosticada por pensadores atentos como Adam Przeworski.

    Adam Przeworski, em sua clássica obra Crises da Democracia, argumenta que "as crises econômicas não apenas geram tensões sociais e políticas, mas também minam a confiança nas instituições democráticas, criando um terreno fértil para o surgimento de movimentos populistas e autoritários" (PRZEWORSKI, 2019, p. 44). Em tempos de dificuldades econômicas, as promessas simplistas de soluções rápidas por parte de extremistas encontram um público mais receptivo, porquanto menos racional. A crise migratória, por exemplo, tem exacerbado os debates sobre identidade nacional e coesão social – a retórica xenófoba encontra eco em populações que se sentem ameaçadas cultural e economicamente.

 

    A Desconfiança nas Instituições e o Crescimento do Populismo     

    A desconfiança nas instituições é um elemento chave que alimenta esses movimentos. Escândalos de corrupção e a percepção de que as elites políticas estão desconectadas das preocupações do cidadão comum criaram um vácuo de confiança. Movimentos de extrema-direita se apresentam como os verdadeiros defensores do povo, desafiando o status quo e prometendo uma "limpeza" do sistema. Neste contexto, a polarização política se intensifica e a desinformação prospera, amplificada pelas redes sociais. A extrema-direita tem se mostrado especialmente habilidosa em usar essas plataformas para disseminar suas mensagens e mobilizar apoio.

    No Brasil, há ecos desse fenômeno global. Embora o ex-presidente Jair Bolsonaro esteja inelegível, o bolsonarismo continua vivo e se constitui como uma força real na sociedade brasileira (AVELAR, 2021, p. 33). Esse movimento se encontra em sintonia com a onda global de ascensão da extrema-direita. A retórica divisiva, a manipulação da pauta moralista e as campanhas de desinformação que caracterizam o bolsonarismo se alinham com as estratégias utilizadas por outros líderes populistas e de extrema-direita. A possibilidade de um retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, mesmo enfrentando sérios problemas judiciais, é um exemplo claro de como essas forças permanecem resilientes e influentes, desafiando a integridade das instituições democráticas em escala global.

 

       O Estado Democrático de Direito sob Ataque

     No preâmbulo da Constituição Federal de 1988, afirma-se o compromisso de "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" (BRASIL, 1988). Estes são valores edificantes do Estado Democrático de Direito, pilares sobre os quais o Estado brasileiro e a sociedade devem se sustentar. O preâmbulo não é apenas uma declaração de intenções; ele guia a interpretação de todos os direitos e garantias fundamentais estabelecidos no texto constitucional. À medida que tais compromissos constitucionais não se realizam, a confiança na democracia se esvai.

    A extrema-direita ataca precisamente o ideal de Estado Democrático de Direito, previsto no preâmbulo constitucional, subvertendo o conceito de democracia e de liberdade ao rotular, por exemplo, as notícias falsas como “liberdade de expressão”. Ademais, investe contra as instituições de justiça e contra a igualdade, minando os princípios basilares de nossa sociedade. Tal subversão não apenas distorce os valores democráticos, mas também enfraquece as estruturas institucionais que almejam assegurar a justiça e a equidade. A contínua agressão às instituições e a promoção de desinformação corroem a confiança pública e criam um ambiente propício ao autoritarismo, traço característico de todos os partidos extremistas.

    Embora na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2076 o STF tenha decidido que o preâmbulo da Constituição não possui eficácia normativa e "não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte", ele serve como uma proclamação dos princípios gerais da Constituição e não pode ser ignorado quanto ao seu valor político e direcionamento da sociedade brasileira. Como desiderato nacional, ele reforça a importância de uma sociedade democrática e pluralista, erigindo valores como o desenvolvimento, a justiça e a igualdade – orientando as interpretações e a aplicação das normas constitucionais em consonância com esses ideais. Quando o país desiste de perseguir esses valores, cedendo, por exemplo, às especulações do mercado e à lógica do rentismo e dos juros escabrosos, a crise da democracia tende a se aprofundar ainda mais, abrindo caminho para que o populismo de extrema-direita se fortaleça.

    Bruce Ackerman complementa afirma que, neste momento histórico, "o estado de direito deve ser um baluarte contra a erosão dos direitos fundamentais e das liberdades, mesmo diante de pressões populistas e autoritárias" (ACKERMAN, 2014, p. 40-41). O autor sugere que as instituições democráticas precisam ser flexíveis e adaptáveis para responder eficazmente a novas ameaças sem comprometer os princípios básicos que as sustentam. Neste contexto, é preponderante a ação corajosa das instituições republicanas na defesa do Estado Democrático de Direito, adaptando-se à necessidade restritiva daqueles que, sob o argumento da democracia, pretendem destruí-la.

 

        Democratizar a democracia

    A história recente tem demonstrado que as democracias não são destruídas apenas por forças externas, mas muitas vezes são erodidas por dentro quando as instituições não conseguem responder adequadamente aos desafios e quando os cidadãos se tornam apáticos ou desiludidos. A luta pelo fortalecimento do Estado Democrático de Direito é, portanto, uma tarefa contínua que exige o comprometimento – desde as mais altas esferas do governo até cada indivíduo na sociedade. É preciso um esforço coletivo para assegurar que os direitos e liberdades sejam mais do que palavras em um papel, mas realidades vividas no seio da sociedade.

    Jürgen Habermas afirma que "a democracia deliberativa é a única forma de garantir que todos os cidadãos possam participar em igualdade de condições na formação da vontade política" (HABERMAS, 1996, p. 103). Assim, fortalecer a democracia é o único caminho para evitar que o populismo extremista se instaure. Promover uma democracia vibrante e participativa exige a colaboração de todos os segmentos da sociedade, fortalecendo a legitimidade das decisões e a confiança nas instituições. Cultivar uma cultura de participação é o verdadeiro antídoto contra o populismo extremista. Cada voz precisa ser ouvida e considerada, assegurando que a democracia não seja apenas uma estrutura formal, mas uma prática viva e inclusiva. Deliberativa essencialmente e não consultiva por formalismo.

    Democratizar a democracia é a melhor resposta às crescentes desigualdades e à desconexão entre os cidadãos e as elites políticas. O desgaste da democracia liberal se deu, sobretudo, pela concepção de que democracia se limita ao ato de votar periodicamente e de que “nada muda” estruturalmente. Repensar e expandir os mecanismos de engajamento democrático para ampliar a voz dos cidadãos em todos os níveis de decisão, promovendo a transparência, a responsabilidade e a inclusão é a grande necessidade de nosso tempo e democratizar a democracia é um passo essencial para construir uma sociedade mais justa, igualitária e resiliente frente as ameaças populistas da extrema-direita. Talvez soe um tanto retórico, mas o fato é que para salvaguardar a democracia, precisamos de mais democracia.

 

Referências


AGÊNCIA BRASIL. Pobreza, imigração e guerra explicam resultado de eleição na Europa. Agência Brasil, 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-06/pobreza-imigracao-e-guerra-explicam-resultado-de-eleicao-na-europa. Acesso em: 23 jun. 2024.

 

ACKERMAN, Bruce. The Decline and Fall of the American Republic. Cambridge: Harvard University Press, 2014. p. 40-41.

 

AVELAR, I. Eles em nós: Retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI. São Paulo: Record, 2021.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 jun. 2024.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2076. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 2002. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=2076&base=baseAcordaos. Acesso em: 24 jun. 2024.

 

CARTA CAPITAL. Macron antecipa eleições na França após vitória da extrema-direita na votação para o Parlamento Europeu. Carta Capital, 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/macron-antecipa-eleicoes-na-franca-apos-vitoria-da-extrema-direita-na-votacao-para-o-parlamento-europeu/amp/. Acesso em: 23 jun. 2024.


HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press, 1996.

 

LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as Democracias Morrem. São Paulo: Zahar, 2018.

 

O GLOBO. É grande a chance de a extrema-direita eleger primeiro-ministro na França. O Globo, 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/google/amp/opiniao/pablo-ortellado/coluna/2024/06/e-grande-a-chance-de-a-extrema-direita-eleger-primeiro-ministro-na-franca.ghtml. Acesso em: 23 jun. 2024.

 

PODER360. Democracia vive prova de fogo com ascensão da extrema-direita, diz Barroso. Poder360, 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/democracia-vive-prova-de-fogo-com-ascensao-da-extrema-direita-diz-barroso/. Acesso em: 23 jun. 2024.

 

PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.



[1] Advogado, bacharel em Filosofia (UFMG), mestre em Ciências Sociais pela PUC-Minas, doutorando em Ética e Filosofia Política pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Especialista em Direito Constitucional (ABDConst); MBA em Gestão Empresarial (FGV). Atualmente, é secretário de Fazenda do município de Nova Lima (MG) e professor de cursos de pós-graduação em Direito Administrativo do IEC -PUC-Minas. Autor de Neoliberalismo Autoritário (Ed. Dialética, 2023).

[2] PODER360. Democracia vive prova de fogo com ascensão da extrema-direita, diz Barroso. Poder360, 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/democracia-vive-prova-de-fogo-com-ascensao-da-extrema-direita-diz-barroso/. Acesso em: 23 jun. 2024.

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