Compartilho texto que escrevi a pedido do professor Marco Túlio de Freitas Ribeiro para uma apostila feita para profissionais de saúde que trabalham com cuidados paliativos:
Breves reflexões sobre a morte, a vida e a dignidade humana
Alisson Diego
"A vida enganou a vida, o homem enganou o homem. Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento De todos: se multipliquei a minha dor, Também multipliquei a minha esperança".
Versos de “Poema Didático” de Paulo Mendes Campos (1922-1991)
A convite do professor Marco Túlio de Freitas Ribeiro, escrevo uma breve introdução à esta publicação técnica com o objetivo de oferecer reflexões sobre a finitude da vida a partir de algumas concepções filosóficas, sabendo-se que, preliminarmente, interrogar-se a todo instante sobre o sentido e a finalidade da existência, diante de sua inerente efemeridade, é a mais humana das reflexões.
A temática da finitude da vida é recorrente em toda a história do pensamento humano. Trata-se de um tema habitual da filosofia, e de diversas áreas do conhecimento e da expressividade humana: na religiosidade, na literatura, na psicologia, na sociologia, na música, na arte, na poesia e, claro, nas disciplinas relacionadas à saúde.
Dos pré-socráticos até a filosofia contemporânea, muitos pensadores têm se dedicado a reflexões das mais variadas sobre a finitude da vida, temática tão amedrontadora quanto instigante. Sócrates categoricamente chegou a definir a filosofia como uma "preparação para a morte". Centenas de anos depois, o filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860) teorizou enfaticamente sobre o tema e afirmou que "a morte é a musa da filosofia".
Numa das mais clássicas abordagens sobre a temática, Platão, no diálogo Fédon, dedicado ao tema da imortalidade da alma, traça um enredo sobre os últimos momentos da vida de Sócrates, instantes antes de ingerir a cicuta, cumprindo a pena capital a que fora imposto pelas autoridades atenienses. No diálogo, explicita-se que a vida vale a pena se valorosa, e realça que a existência indigna e desprovida de valores seria pior do que a própria morte. No diálogo em questão, o filósofo também argumenta que a morte é apenas mais uma etapa a se seguir e essa compreensão generosa da finitude somente se daria mediante a experiência filosófica, a única capaz de dar conta da totalidade da realidade.
Santo Agostinho, principal expoente da Patrística, concebe o ser humano em si mesmo como um problema filosófico e transpõe o sentido do existir humano na essência dos planos de Deus, sendo a vida um dom divino. O homem sem Deus seria miserável e apenas reencontrando-se com o divino é que a vida se plenificaria de sentido. Em contraste com o pensamento agostiniano, séculos mais tarde, Sartre defenderá que o homem não possui qualquer uma essência que o precede, isto é, não pode ser definível ou determinável. Como um ser que nunca “é”, o homem deve, por ele mesmo, construir seu próprio sentido para a vida. Assim:
“a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada” (SARTRE, 1997, p. 661).
Sendo a vida um dom divino ou uma livre condicionante para a construção humana, o fato é que se torna impossível abordar a questão da finitude da vida sem levar em consideração o longo e complexo histórico do pensamento filosófico sobre o tema. Algumas dessas concepções são aqui diametralmente mencionadas apenas para demonstrar a complexidade da temática sobre a qual ousa-se brevemente refletir neste pequeno texto.
Ainda que possua acepções por vezes generosas, a temática da finitude tem sido comumente circundada por sentimentos como o medo, a angústia e o escapismo. Por isso, ao se falar de morte, é inevitável se falar também sobre o tabu que a permeia historicamente, algo muito reforçado na sociedade atual, ao se privilegiar o imediato, o material e o prazer em detrimento da contemplatividade e da transcendência nas experienciações do viver. Vive-se, hoje, como se a vida não tivesse fim ou como se a morte fosse uma espécie de mácula e não uma consequência natural, consoladora e inevitável do viver.
A morte tem sido tratada como um tabu até mesmo por muitos daqueles que ousam refletir sobre ela. Costumeiramente, falamos da morte como se fosse um fato completamente alheio a nós, isto é, mencionamos a morte tão somente de modo abstrato; quase sempre falamos da morte do outro, mas quase nunca da nossa própria morte. Não por acaso, os cemitérios da contemporaneidade não podem ser vistos pela comunidade. Sob muros altos ou escamoteados em vastos campos verdes, eles ficam, em nossos tempos, cada vez mais à margem das regiões centrais, numa tentativa ingênua de esconder a única certeza de nosso destino.
Neste sentido é que o escritor e filósofo espanhol, catedrático de Ética na Universidade do País Basco, Fernando Savater, classifica como “espantosa” a nossa reação quando tomamos consciência da certeza de nossa própria finitude (a morte do eu).
Pode-se dizer que há três interpretações na compreensão da morte:
I) considerá-la como o início de um ciclo de vida (crença na reencarnação ou na vida incorpórea, comum em vários dogmas religiosos);
II) percebê-la como o fim de um ciclo de vida (a cessação de todos os sofrimentos e o descanso eterno, sem perspectivas de continuidade de uma vida pela alma);
III) tomá-la como uma possibilidade existencial (diferentemente das duas concepções acima, a possibilidade mostra o destino comum, presente na vida a qualquer tempo).
Em nenhuma das três concepções, há o componente da certeza fática e/ou mesmo o da consolação, capazes de amainar as dores e o sofrimento da finitude.
"Existirmos, a que será que se destina?", pergunta retoricamente o cancioneiro Caetano Veloso na célebre canção “Cajuína”, um forró inspirado em Torquato Neto, um talentosíssimo poeta piauiense que deixou a vida aos 28 anos de idade, abruptamente. Se a vida pode ser interrompida a qualquer momento, qual seria, então, o sentido do viver?
Apraz-me a visão de Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.) sobre a morte. Diz o filósofo: “o sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal”.
Viver é, antes de tudo, uma imensa oportunidade de intervir no mundo e melhorá-lo; coexistir num planeta carente de significação e afeto. Portanto, pensar na morte pode nos fazer viver melhor, com objetivos mais claros, consciência mais ampla e autenticidade. Essa reflexão vale para que o ser humano possa reavaliar, constantemente, o rumo que dá à própria existência, auxiliando na identificação dos erros cometidos, sobretudo quando se pensa no relacionamento que se constrói com as pessoas realmente importantes para a nossa vida.
Pensar em nosso fim nos concede uma raríssima oportunidade de mudar o que está “errado” enquanto ainda há tempo. Essa deveria ser uma reflexão diária, e não algo angustiante e doloroso. É uma rara oportunidade de fazer valer a vida até o fim.
Rubem Alves, esse grande pensador brasileiro que tinha o dom de escrever acerca de temáticas profundas com uma simplicidade própria dos grandes gênios, teceu uma reflexão muitíssimo tocante, numa crônica formidável - publicada em 2003, quando o filósofo contava com 70 anos de idade – a qual recomendo enfaticamente a todos aqueles que se dispõem a pensar sobre a morte:
“Dizem as escrituras sagradas: ‘Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer’. A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelângelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo”. (ALVES, Rubem. Sobre a morte e o morrer. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Sinapse. 12 de outubro de 2003.)
Ante o percurso feito até aqui, insta interrogar em tons de fechamento: como os cuidados paliativos se relacionam com as cosmovisões filosóficas sobre a vida e a sua imponderável finitude? Os cuidados paliativos relacionam-se a um momento fundamental da experiência vital do ser humano, uma vez que a humanização dos momentos finais da existência representa um caminho mais amplo que a evitação da dor e a partida suave. Os cuidados paliativos são também oportunidades raras de emprestar sentido à vida, em toda a sua dimensão de precariedade e beleza.
A questão está intrinsecamente vinculada também ao modelo de sociedade que se está a erigir e a consequente sociabilidade ante a qual nos conectamos. Uma sociedade essencialmente ancorada em valores humanísticos, desde a concepção da vida até os instantes finais da existência, não deve prescindir do amor e da solidariedade. Isso representa, ainda, a oportunidade de insculpir uma das mais valorosas qualidades morais: a dignidade – tanto para os que cuidam, quanto para quem está sendo cuidado. Uma vida indigna nunca poderá ser plena e autêntica. Ainda que essa dignidade venha apenas no fim, isso pode representar uma verdadeira redenção para o existir humano, emanando louváveis expressões de esperança, afeto e conforto nas últimas lufadas de vida, tornando-nos mais humanos, plenos e conscientes.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Sobre a morte e o morrer. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Sinapse. 12 de outubro de 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1210200309.htm. Acesso em 01/07/2023.
CAMPOS, Paulo Mendes. Poesia. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2023.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
SAVATER, F. As perguntas da vida. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2001.
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