Semana santa e feriado prolongado a partir de quinta-feira para nós que ousamos, ainda, exercer o múnus público. Costumeiramente, utilizo esses quatro dias para três finalidades: estudar, exercitar e refletir sobre a religiosidade e a transcendência. Fico no meu lugar de sempre: Itaguara, casa de mãe e avós. Meu habitat histórico-espiritual.
O que eu não contava era que este ano uma amigdalite fortíssima me acometeria justamente na quarta-feira santa, um dia antes de viajar para o retiro pascal itaguarense. Numa consulta na noite de quarta-feira, a médica foi categórica: “viaje quando melhorar, não beba ou fume e mantenha o repouso”. Um dos três propósitos, o exercício físico (as trilhas e/ou longas caminhadas) estava prejudicado, então restava-me dedicar a ler e refletir. Mas tudo eu costumo viver sem altos reclames porque como nos ensinou Santa Teresinha do Menino Jesus: “Tudo é graça”. Melhorei um pouquinho e vencida momentaneamente a febre, na quinta-feira mesmo, à tardezinha, mentalizei o Salmo 140, pedi a proteção à Nossa Senhora do Livramento e parti para Itaguara. Àquela altura, eu já havia lido, entre quarta à noite e quinta pela manhã, mais da metade de um denso livro filosófico.
Ao chegar em casa materna, a garganta tornara a incomodar, mas não a ponto de afastar o meu propósito. Entre a febre que retrocedia e voltava ciclicamente, decidi fugir das leituras que havia me proposto inicialmente (relatórios gerenciais, estudos tributários e dois livros filosóficos para o doutorado). “Preciso de literatura brasileira, mineira, além de uma obra filosófica e talvez algumas crónicas”, disse a mim mesmo. Foi então que optei por me dedicar a três livros: um de Luís Fernando Veríssimo, uma tese de doutorado sobre a teoria democrática em Habermas e Honneth (que já havia começado a ler na noite anterior) e o que mais me motivava: a antologia de Murilo Rubião.
Nunca leio exclusivamente uma obra. Gosto de ler três ao mesmo tempo (e de gêneros diferentes) para descansar e instigar a mente. Quando a leitura filosófica fica pesada, vou de crônica. Quando as crônicas se tornam maçantes, fio-me nos contos. E por aí vai...
Entre crônicas, teses filosóficas e contos, preciso falar de Rubião. Acabo de terminar as suas “Obras completas”. Foi uma (re)leitura mágica, doce, transcendente – não poderia ter feito escolha melhor para esta semana santa. Eu já havia lido uns cinco ou seis contos do Murilo, mas não me aventurara, até então, a ler as obras completas e posso dizer que fiquei no mais completo êxtase ao fazê-lo.
Logo ao terminar a leitura muriliana, ontem mesmo, após horas e horas de compenetração, enviei uma mensagem para um fraterníssimo amigo que estuda Letras na prestigiosa FALE, na UFMG, dizendo do meu entusiasmo com Rubião. Como um balde de água fria, ele me disse: “Eu gosto muito, mas sinto uma tristeza por saber que ele é praticamente um desconhecido nas faculdades de letras”. “Como assim!?”, pensei sobressaltado! Trocamos mais uma dezena de mensagens e fiquei refletindo: como pode um autor mineiro tão inovador ser desconhecido? Do grande público ainda vá lá porque nossos tempos de massificação cultural são mesmo aterradores, mas até dos estudantes de letras em Minas Gerais!?
E por qual motivo Murilo Rubião (1916-1991), não pode ser desconhecido? Dentre outras razões, porque o autor mineiro foi o grande precursor da literatura fantástica no Brasil e na América Latina, antes mesmo do célebre trio mágico surgir: Gabo, Cortázar e Borges. Murilo possui um estilo literário muito original, além de ser metódico, cirúrgico, um verdadeiro escultor de palavras. Dentro do propósito que traçou para a sua literatura: a narrativa baseada na extraordinariedade, a capacidade de ser disruptivo sem promover rupturas, isto é, de naturalizar o absurdo na tessitura de um encadeamento textual peculiar. Comparado a Kafka, o escritor mineiro disse numa entrevista que sua influência viera mesmo de Machado de Assis e que sequer havia lido o escritor de língua alemã antes de publicar seus primeiros textos.
Murilo Rubião em Ilustração por Rafael Rubião |
Um dos contos de que mais gosto é ‘O Pirotécnico Zacarias’, publicado em meados dos anos 1970. Nele, o narrador-defunto escancara, por meio de várias situações e diálogos cotidianos, o absurdo da condição humana. Atualíssima é a conclusão a que chega o personagem, após observar a sociedade e refletir sobre a sua condição quase nada incômoda de vivo-morto ou de morto-vivo, a depender do ponto de vista: “Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados”.
Murilo não foi um escritor prolífico, apesar de sua obra ser rica e complexa. Produzia pouco para produzir bem, talvez por isso mesmo a sua literatura seja tão potente e tangível em sua intangibilidade. Sua obra é muito necessária na atualidade, diante da complexidade que as relações humanas passaram a representar em nosso momento histórico, uma era tão absurda quanto alguns dos contos do próprio Murilo, embora em nossa realidade distópica esteja ausente a irreverente genialidade do escritor mineiro. Em seu lugar, há uma massificação de tudo, uma hegemonização cultural empobrecedora.
Além de seus predicados literários, Murilo Rubião dirigiu a rádio Inconfidência, foi oficial de gabinete do governador Juscelino Kubitschek e chefiou o Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil na Espanha. Sua vida dividiu-se, portanto, entre as burocracias do múnus público e os afazeres literários. Rubião precisa se fazer presente, não para adornar qualquer mineirismo rançoso, mas para o devido reconhecimento de sua obra magistral, fertilizadora de caminhos novos e, claro, para o deleite de todos aqueles que privilegiam uma literatura autêntica.
Eu vejo e sinto: Rubião está presente. Que tenhamos olhos de vê-lo e sensibilidade em lê-lo, a fim de, pelo menos, tentarmos romper com essa “vida agonizante” de nosso tempo, incapaz de “amar e discernir as coisas”.
* Texto originalmente publicado no site Sagarana Notícias em abril de 2023
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