Compartilho artigo originalmente publicado pela Revista eletrônica Conjur em 18 de janeiro de 2023.
A publicação original pode ser acessada por este link: Conjur Alisson Diego.
Políticas sociais, ambientais e o orçamento público: breve análise do desmonte
Como está o Brasil nestes primeiros dias de 2023? Qual a situação encontrada pelo governo que acaba de assumir? Para além da retórica vazia e das narrativas inventivas, que têm denotado estes nossos tempos de desrazão sistêmica, existem sérios diagnósticos e robustos indicadores — números que precisam ser observados quando se ousa empreender uma análise honesta dos fatos. Um exame mais amplo demandaria um texto mais extenso e esse não é, definitivamente, o objetivo. Dessa forma, dar-se-á enfoque, neste texto, a três temas: o meio ambiente, as políticas sociais e o orçamento secreto.
A Constituição Federal de 1988 estabelece de maneira clara, em seu artigo 225, que todos os brasileiros têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pré-condição para a qualidade de vida, conferindo-lhe patamar de direito fundamental [1]. Cuidar dos ecossistemas, defender as instituições ambientais, coibir desmatamentos e queimadas, autuar os transgressores e implementar programas de conscientização é o mínimo que se espera de qualquer governo que assuma a república — deve-se cumprir fielmente os preceitos constitucionais, acima de qualquer programa de governo de ocasião.
O meio ambiente foi a área mais depauperada pelo governo que acaba de deixar o poder. Além dos constantes ataques verbais proferidos durante quatro anos pelo ex-presidente e sua equipe, tanto aos órgãos ambientais, quanto às ONGs que possuem atuação na área e aos ambientalistas de norte a sul do país, os números comprovam o desastre: a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou 59% entre 2019 e 2022 e a destruição do cerrado também alcançou níveis recordes. Sob o governo de Jair Bolsonaro, deu-se o pior índice de destruição ambiental em um mandato presidencial, desde 1988, quando iniciaram-se as medições por satélite [2].
O desmonte das políticas ambientais foi deliberado e se comprova pela diminuição drástica de recursos para a área. Dos R$ 4,6 trilhões previstos no Orçamento da União de 2022, menos de R$ 3 bilhões foram destinados para o Ministério do Meio Ambiente. A título de comparação, no ano de 2014, o orçamento inicial previsto pelo governo federal para órgãos socioambientais foi de R$ 13,1 bilhões; isto é, em 2022 houve uma queda superior a 70%. Ademais, os recursos destinados para ações como combate ao desmatamento e queimadas, oficialização e manutenção de áreas protegidas e à proteção de comunidades indígenas e tradicionais foi o menor em quase 20 anos [3].
Alguns tentam e obtém relativo sucesso na proliferação de inverdades pelo submundo das redes virtuais, manipulando os números e argumentando que a taxa de desmatamento no governo Bolsonaro teria diminuído em comparação a governos anteriores. No entanto, basta recorrer ao histórico informado pelo próprio Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) para restabelecer a verdade dos fatos [4].
O segundo aspecto são as políticas sociais, as quais sofreram um desmonte histórico no mandato presidencial que findou há alguns dias e perderam a sua capacidade sistêmica e estratégica — a dimensão de direitos constitucionalmente garantidos passou a ser percebida pelo governo da ocasião como mera moeda de troca política. A esfera da garantia jurídica e as políticas socioassistenciais, estruturadas por meio do Sistema Único de Assistência Social (Suas), transformaram-se em favores governamentais assistencialistas numa perversão dos artigos 203 e 204 da Carta Magna [5]. A bolsa (um direito) converteu-se em auxílio (muleta social, ajuda, graça governamental) e as condicionalidades em saúde e educação foram seriamente debilitadas. Um exemplo disso é que o total de crianças menores de sete anos com acompanhamento vacinal passou de 68% em 2019 para 45% em 2022, conforme apontam as conclusões do Relatório do Gabinete de Transição Governamental [6].
Outros números que atestam o desmonte, a má-gestão, a ausência de planejamento e o caráter eleitoreiro com que Bolsonaro e seus comparsas tratavam as políticas sociais: 1) cerca de 40% dos dados do Cadastro Único para Programas Sociais estão desatualizados; 2) foram concedidos R$ 9,5 bilhões de empréstimos consignados para beneficiários do Auxílio Brasil e do Beneficio de Prestação Continuada (BPC) nas vésperas da eleição com taxas de juros exorbitantes, comprometendo até 40% do valor dos benefícios sociais, em completa desarmonia com o que preceituam as políticas de proteção social, além de colocar em risco os benefícios futuros; 3) o tempo médio para a concessão do BPC, hoje, é de quase um ano (antes era de 78 dias), de acordo com estudos do Tribunal de Contas da União (TCU); e 4) as estruturas relacionadas à segurança alimentar foram completamente desmanteladas como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) e programas como o Cisternas (que já havia chegado a atender mais de um milhão de famílias com tecnologias sociais de acesso à água, mas que em 2022 não chegou sequer a mil cisternas entregues) e o Fomento Rural (cuja estratégia de combate à pobreza rural foi praticamente abandonada).
Não bastasse o cenário caótico certificado pelos números, o governo anterior legou uma proposta orçamentária absurda para 2023 [7], com uma redução de 96% do orçamento do Suas em comparação com 2022 — valor insuficiente para um mês de funcionamento dos equipamentos de proteção básica e especial e das unidades de acolhimento. Até mesmo a promessa feita por Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, de manter o Auxílio Brasil em R$ 600 seria descumprida já no início deste ano, uma vez que o orçamento enviado ao Congresso previa apenas R$ 400 para o benefício assistencial. O que leva a crer que se Bolsonaro fosse reeleito, seu novo governo cortaria por completo as políticas sociais ou teria de contar com um extraordinário beneplácito fiscal do Congresso Nacional para promover déficits recordes. Caótico é um adjetivo eufemístico diante dessa conjuntura [8] e o principal indicador desse caos é a volta da fome que, segundo levantamento da Rede Penssan, atingiu mais de 30 milhões de brasileiros em meados de 2022 [9]. Isso num país que, há apenas oito anos, havia celebrado por deixar de integrar o triste mapa mundial da fome, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Por fim, outro legado desviante do bolsonarismo é a relação desvirtuada com o Congresso Nacional, a qual se manifestou, dentre outras nuances, pelo uso indiscriminado das imorais emendas de relator (RP-9), acontecimento que ficou celebremente conhecido como "orçamento secreto" [10]. Por meio desse mecanismo, recentemente declarado inconstitucional pelo STF, deputados e senadores do bloco parlamentar aliado ao governo destinaram, apenas no último ano, quase R$ 20 bilhões para as suas bases eleitorais, sem observância ao sagrado princípio da transparência e sem qualquer direcionamento estratégico. Além da imoralidade, houve um esgarçamento da capacidade de investimentos da União, praticamente transferindo para o Poder Legislativo o mister maior do governo federal: conduzir as políticas públicas federais inseridas em uma ampla estratégia nacional de investimentos.
A velha máxima do "toma lá, dá cá" permeou o governo anterior que, sufocado politicamente e vivendo a lógica do "vale tudo pela reeleição", perdeu quase que totalmente a sua capacidade de orientar, adequadamente e num panorama estratégico, os parcos investimentos federais. Bilhões de reais foram para bases parlamentares sem quaisquer parâmetros lógicos e ausente um monitoramento dos resultados das aplicações desses recursos públicos.
De acordo com a ONG Transparência Internacional Brasil [11], o "Orçamento Secreto perverteu a formulação de políticas públicas em áreas essenciais como saúde, educação e assistência social, retirando recursos de programas elaborados por técnicos, orientados por prioridades e visão de longo prazo, para favorecer projetos paroquiais e insustentáveis servindo interesses eleitoreiros. O esquema pulverizou ainda mais a corrupção no país, potencializando fraudes e desvios em nível local, ao jorrar bilhões para municípios sem capacidade institucional de controle".
Nesta mesma linha, deu-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 850, 851, 854 e 1014 ajuizadas pelo Cidadania, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e pelo Partido Verde (PV). Responsável por proferir o voto decisivo, ancorando-se nos princípios republicanos, Lewandowski asseverou que: "a persecução do interesse público e a participação dos cidadãos na gestão, fiscalização e controle da Administração Pública são indissociáveis do dever de divulgação daquelas informações de interesse coletivo, produzidas ou custodiadas pelo Estado" [6].
São tempos notadamente estranhos, nos quais os princípios da transparência e as bases ideológicas republicanas precisam ser manifestamente proferidas num julgamento no Supremo Tribunal Federal para reiterar o óbvio: o estado deve-se guiar pela publicidade de seus atos e mecanismos como o orçamento secreto violam os princípios republicanos, sobretudo os da transparência, da publicidade e da impessoalidade.
Se os tratarmos com a devida atenção e sobriedade, os números podem nos dizer muito sobre a realidade do país e sobre as escolhas político-ideológicas e administrativas de seus governantes. Sem intento de personificá-los, mas dando-lhes voz, o que os números nos dizem sobre o governo Bolsonaro é: houve uma acefalia na condução das políticas públicas, uma racionalidade autoritária, antiambientalista, tratando o povo como "massa de manobra" e utilizando o orçamento público sem estratégia alguma, um projeto de poder que foi frustrado graças à coragem do Poder Judiciário ao coibir muitos intentos antirrepublicanos. E graças, sobretudo, à consciência democrática que inspirou a maior parte do povo brasileiro.
Notas:
[1] BRASIL. [Constituição (1988)]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Artigo 225.
[2] Biernath, André, da BBC Brasil, sobre os números do desmatamento no governo federal: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63290268. Acesso em 4/1/2021.
[3] PRIZIBISCZKI, Cristiane. Orçamento de órgãos ambientais cai 71% sob Bolsonaro e é o menor em 17 anos. O ECO, 2022. Disponível em: https://oeco.org.br/noticias/orcamento-de-orgaos-ambientais-cai-71-sob-bolsonaro-e-e-o-menor-em-17-anos/. Acesso em 3/1/2023.
[4] Biernath, André, da BBC Brasil, sobre os números do desmatamento no governo federal: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63290268. Acesso em 04/01/2021.
[5] O caráter universal, estratégico e a materialização da assistência social como garantia constitucional está previsto no caput do artigo 203 da Constituição Federal de 1988 com a expressão "a quem dela necessitar", além do inciso VI do mesmo artigo, incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021, que alça a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza como um objetivo do estado brasileiro.
[6] Disponível em: https://static.poder360.com.br/2022/12/Relatorio-final-da-transicao-de-Lula.pdf. Acesso em 4/1/2023.
[7] O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2023) enviado ao Congresso encontra-se disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/orcamentos-anuais/2023. Acesso em 5/1/2023.
[8] LAGO, Rudolfo. Volta da fome é o principal indicador do desmonte das políticas públicas. Congresso em Foco, 2022. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/volta-da-fome-e-o-principal-indicador-do-desmonte-das-politicas-publicas/. Acesso em 2/1/2023.
[9] 33 milhões vivem insegurança alimentar grave no país, diz estudo. Poder 360, 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/33-milhoes-vivem-inseguranca-alimentar-grave-no-pais-diz-estudo/. Acesso em 5/1/2023.
[10] O nome dos parlamentares que fizeram as indicações da destinação das verbas muitas vezes ficava oculto. Ademais, essas emendas não possuíam execução obrigatória e ficavam à mercê de "acordos" entre o Executivo Federal e o Congresso Nacional. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/834976-emendas-de-relator-vao-atender-20-programacoes-com-r-162-bilhoes-em-2022/. Acesso em 5/1/2023.
[11] Transparência Internacional Brasil; Nota da sobre a decisão do STF que considerou inconstitucional o "orçamento secreto". Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/posts/nota-sobre-a-decisao-do-stf-sobre-a-inconstitucionalidade-do-orcamento-secreto/. Acesso em 4/1/2023. [12] LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF) - Decisão do STF sobre o orçamento secreto: ADPFs: 850, 851, 854 e 1.014. voto do Vogal ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6492811>. Acesso em 5/1/2023.
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