Por mais que minha fé, por vezes, seja fragilmente cambaleante e o agnosticismo insista em guiar-me a razão, fato é que possuo um respeito absolutamente “oblato” à Semana Santa e ao que se reverencia nesta data: a caminhada rumo à morte de cruz e gloriosa ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ungido salvador de toda a humanidade.
Neste sentido, quero compartilhar um hábito que tenho mantido ao longo dos últimos 18 anos (desde que participei de uma encenação teatral na Semana Santa): na sexta-feira da paixão, dedico-me à leitura de poemas “religiosos” e “transcendentais”.
Independentemente da crença em si, ou mesmo da estética poética, debruço-me sobre esse gênero poético para sentir, pois são, via de regra, composições bastante carregadas de uma singular sentimentalidade. O que chamo atenção aqui é o rito, os versos desejantes e a manifestação humana do sagrado.
Um dos constantes poetas desse dia marcante tem sido o célebre espanhol São João da Cruz (nascido João de Yepes em 1542 e morto em 1591), considerado “doutor místico” pela Igreja Católica (assim proclamado pelo Papa Pio XII em 1926).
Sua vida foi marcada, por um lado, pela dor infligida-lhe pela dura realidade externa, e por outro pela alegria da descoberta crescente de uma vasta e luminosa realidade interior.
Para São João da Cruz, não se pode “explicar com palavras o que com palavras não se pode exprimir”. Ele sente de uma maneira comovente e se vale dessa sentimentalidade disruptiva para compor versos arrebatadores.
Não é fácil compreender os versos místicos dele sem acompanhamento de comentadores, mas ouso compartilhar aqui uma composição (para se ter a ideia da força transcendental-semântica): “Chama de Amor Viva” - “Canções da alma na íntima comunicação de união de amor com Deus” (Granada 1582- 1584):
1. Oh! chama de amor viva
Que ternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! Rompe a tela deste doce encontro.
2. Oh! cautério suave!
Oh! regalada chaga!
Oh! branda mão! Oh! toque delicado
Que a vida eterna sabe,
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado.
3. Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido, -
Que estava escuro e cego –
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!
4. Oh! quão manso e amoroso
Despertas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gostoso,
De bens e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras!
Chama de Amor Viva – Fonte: SCIADINI, Patrício.(Org.). Obras completas. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2002, p. 37 e 38. A fotografia: Escultura de São João da Cruz, na Igreja das Carmelitas Descalças, em Sevilla, na Andaluzia. Obra de Pedro Roldán.
Nenhum comentário:
Postar um comentário