Foto: Rodrigo Gorosito / G1. |
De tudo o que aconteceu, de norte a sul do país, neste carnaval, o grande destaque ficou por conta do intrépido desfile da Estação Primeira de Mangueira no Rio de Janeiro.
A escola de samba teve a ousadia de levar para a Sapucaí um enredo que reconstruiu a história do Brasil por meio de heróis da resistência, negros e índios.
O enredo “História pra ninar gente grande” foi de responsabilidade do carnavalesco Leandro Vieira que, em entrevista, enfatizou: “A abolição (da escravidão) foi um resultado e não uma consequência de uma concessão dada por uma princesa... O olhar da Mangueira é para isto: desmitificar a história oficial e apresentar novos heróis”.
Na Marquês de Sapucaí, a verde e rosa mostrou que o esforço para eliminar a diferença sempre fez parte da história humana e, particularmente, brasileira. Todos os direitos e liberdades de que “usufruímos” nos dias hodiernos foram fruto de uma árdua e lenta conquista. Conquista, benevolência não.
“O Brasil tem cara de cariri”, diz a letra do samba-enredo. Habitantes originais do sertão brasileiro, os cariris foram perseguidos e massacrados, sobretudo no século XVII. A valente sobrevivência dos indígenas e sua cultura, assim como o fim da escravidão não vieram por bênçãos celestiais, mas pela luta do povo – isso está translúcido na corajosa letra da Mangueira.
A menção a Marielle, após a citação da revolta dos malês, mostra que a tragédia do genocídio que nos perpassa a história continua, assim como a impunidade e a injustiça. Mas a voz da Mangueira não nos deixa silentes diante de tudo isso. Vocaciona uma nação inteira ávida por resistência, justiça e paz.
“Todo carnaval é uma manifestação séria disfarçada de brincadeira”, lembrou o carnavalesco da Mangueira. “A brincadeira pode e deve fornecer material para a reflexão”. O samba enredo corria o risco de ser triste, mas ninguém ali chorava de tristeza, mas sim sambava com alegria porque o que ocorreu no desfile foi uma celebração da história do povo brasileiro, de quem lutou e luta com destemor para viver com alegria, em meio a tantas opressões e desilusões.
De tão bela e forte, a letra merece ser compartilhada na íntegra:
“Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não tá no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos brasis que se faz um país de lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões”.
A grande lição da Mangueira se resume nisto: Em nossa história, nada veio de graça. E gratuitamente nada virá. É preciso lutar.
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