Práticas e memórias: Itaguara entre a tradição e a modernidade
(Uma análise do Projeto Culturas Populares e Artes Visuais, realizado no XV Festival de Inverno e Gastronomia de Itaguara)
Rafael Penido Vilela Rodrigues, 21
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa” – disse o poeta Mario Quintana. Assim é: viver, fazer, sobreviver... E caminhar: vida também é caminho (!) de expiação e provas. Olhando para a história, podemos dizer que os seres humanos são construtores de suas vidas; pelos tempos idos e vindos, por cada percurso, cada passo, cada dever cumprido, os homens tecem suas experiências e compartilham de outras; constroem a si mesmos através de suas práticas.
A capacidade de compartilhar experiências é a ação que enriquece nosso espírito; é o desenvolvimento intelectual através de conhecimentos úteis à vida. O nosso aprimoramento pessoal e, consequentemente coletivo, se estabelece na troca de saberes. Os quais podem apreender na memória e associar-se ao fazer.
A memória é o vivido: onde cada ação, cada feito, cada gesto cotidiano, é repetido religiosamente como àquilo que sempre se fez; é o fazer necessário que sustenta e constrói as identidades de uma determinada comunidade.
José Antônio de Castro Filho, um dos idealizadores do projeto. |
Representando a potencialidade e criatividade de indivíduos cheios de sabedoria e experiências adquiridas com o cotidiano, o Projeto Culturas Populares e Artes Visuais – realizado em vinte e cinco de julho do corrente ano, na Praça do Museu Sagarana durante o XV Festival de Inverno e Gastronomia de Itaguara, em parceria com a Escola de Belas Artes da UFMG –, chamou a atenção de muitos itaguarenses e visitantes que passaram pelo local.
O evento foi idealizado com o propósito de valorizar os indivíduos que cultivam os ofícios e os saberes adquiridos através de gerações e gerações. Biscoiteiras, ferreiros, oleiros, benzedores, balaieiros, escultores, fiandeiras, artesãos, enfim: gente simples, homens e mulheres que reescrevem o passado, que trazem em cada saber e ofício as pegadas das tradições e das memórias que habitaram fortemente o passado. São pessoas que nos fazem lembrar as bases que construíram a sociedade atual; sujeitos que trazem na memória os conhecimentos que aprenderam com pais, avós, bisavós e companheiros de serviço, em um intercâmbio de saberes que dá tonalidade à vida dos itaguarenses.
A autenticidade daquelas pessoas que na Praça do MUSA colocavam em prática e faziam demonstrações de seus ofícios e saberes, demonstrava o quanto somos artesãos da própria vida. As técnicas apreendidas na troca de experiências, no fazer fazendo, são representações da cultura construída no dia-a-dia. Fazemos a nós mesmos a partir da cultura que emerge das práticas coletivas, humanas, vividas em conjunto; cultura que opera transformando-nos em indivíduos protagonistas do teatro da vida.
O contato face a face com pessoas ricas em experiências possibilita aprimorarmos a nós mesmos, tanto no conhecimento prático, quanto em valores morais e éticos. O ritmo harmonioso daqueles itaguarenses é o que dá contorno e cor para suas experiências, que são cheias de valor e utilidade para a vida passada de geração em geração. Afinal, eles se constituíram como sujeitos através da troca de saberes, do trabalho em grupo, do viver em conjunto, e são essas pessoas que deveriam ser nossos espelhos.
Pode-se dizer do ferreiro Agnaldo, que com toda paciência moldava o ferro produzindo ferramentas que outros trabalhadores se beneficiarão. Para Agnaldo, é importante saber qual a melhor madeira para fabricar o carvão, saber qual o material ideal para determinada ferramenta, saber qual a temperatura desejada, saber qual o ponto e materiais adequados para temperar o objeto a ser produzido: o que demonstram a eficiência e o zelo ao bom trabalho.
Aquilo que não é dito, que não é possível de ser observado no ato do ofício, representa a experiência prática, moral e ética que este ferreiro adquiriu em sua vida. Além disso, são experiências que ele transmite a seus filhos e esposa, que o acompanham na lida do dia-a-dia. Trata-se de um perpetuar, de uma construção e reconstrução de saberes, reminiscências que caminharam com outros sujeitos.
Mas como podemos perceber a troca de experiências e a formação dos indivíduos atualmente? O que foi feito de tudo isso? A modernidade, a internet, o facebook e a individualidade são capazes de intercambiar valores por gerações?
São questões que fazem lembrar os ensaios literários do alemão Walter Benjamin, que compara a História a um quadro de Paul Klee, que se chama Angelus Novus. Ele argumenta que, assim como no quadro, o Anjo da História parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, o Anjo da História vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína abaixo de nossos pés. O Anjo da História gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1987, p. 226).
Podemos notar que a metáfora do Anjo da História retrata a realidade estabelecida aos ofícios e saberes passados de pessoa a pessoa, construídos através dos tempos. A tempestade do progresso arrasta as práticas e memórias tecidas por gerações para um futuro incerto. As expectativas do progresso transformam os saberes em migalhas, os valores essenciais para uma vida digna fragmentam-se em função de modelos superficiais, que ditam o modo de vida da sociedade. O passado torna-se um índice misterioso que só se deixa observar como uma imagem deixada para trás. E o futuro como um horizonte imprevisível, mas que tentamos, em vão, pintar com a mistura das cores da tradição e da modernidade.
Com efeito, a atenção que itaguarenses e visitantes dedicaram ao evento se estabeleceu a partir da alteridade, da distinção, da diferença. Eles tentavam reconhecer um passado que não se sente mais, uma busca pela história vivida em outros tempos e deixada para outras gerações. A modernidade sobrecarregou-nos de informações, fazendo com que a teoria substitua a prática. A memória – aquilo que se fazia cotidianamente – tornou-se História, versões do que se passou: são migalhas, poeiras, demonstrações de ofícios e saberes tradicionais. Uma galvanização do passado, uma espécie de tingimento de memória que encobre as práticas dos indivíduos com um tênue verniz de História.
Contudo, devemos lembrar, relembrar, reviver memórias, dar luz a tradições, isso é, preservar nossa identidade. Portanto, caros itaguarenses, ai esta a importância de valorizarmos as raízes da nossa cultura, que emerge das práticas e memórias populares, que nos fazem orgulhar e demonstrar que Itaguara ainda é rica em experiências, nos fazem sentir comovidos e importantes no cenário de uma cidade que presa por sua identidade. De maneira que, identificar a nós mesmos e saber quem somos, é definir nossas capacidades e possibilidades. Compreender que somos parte de uma comunidade que já exista antes mesmo de nosso nascimento e que continuará a existir após nossa morte, é ter plena consciência de nossas ações.
Portanto, por fim, podemos dizer que o Projeto Culturas Populares e Artes Visuais, realizado no XV Festival de Inverno de Itaguara, demonstrou um pouco daquilo que vivemos atualmente. Por muitas vezes não reconhecemos o outro – o passado – ai nos aproximamos um pouco para ver quem ele é. Mas não sabemos o que ele está fazendo ali, então construímos um cenário e acreditamos que de fato era apenas uma encenação do que já se viveu um dia. Mal sabíamos que nós mesmos estávamos ali, observando não o outro pura e simplesmente. Olhávamos para aquilo que nos fez chegar até aqui, para aquelas práticas que construíram o caráter que os mais velhos um dia nos ensinaram; olhávamos para aquilo que nos constitui intimamente, que está no cerne, na essência de nossa identidade; olhávamos para nós mesmos em um jogo de espelhos, onde as imagens se misturavam e mal sabíamos reconhecer o que acontecia ali.
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