Paulo Ziulkoski: Alerta aos candidatos - Le Monde Diplomatique Brasil
Não é uma eleição de prefeitos. Esta é uma eleição de superprefeitos. Quem vencer a disputa das urnas nesta primavera no Brasil receberá no verão um desafio bem mais difícil: comprovar superpoderes. Sob o uniforme de gestor, passará por um teste tão complicado como o de ministro da Economia na zona do euro. No território político, terá de reaver nacos de autonomia tomados ao longo dos últimos anos pelos governos estaduais e federal.
Ficou mais complexo o cargo. Convergem para o próximo mandato novidades institucionais como a vigência integral da Lei da Ficha Limpa, a aplicação obrigatória de ferramentas de transparência e a consolidação jurídica da interpretação sobre a Lei da Responsabilidade Fiscal. Todas bem-vindas ao processo de amadurecimento da sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo que o avanço da cidadania, porém, uma série de medidas concebidas no Parlamento e no Palácio do Planalto lança sobre os ombros do dirigente municipal um peso insustentável e indevido. Novas leis em gestação ou em aplicação inviabilizam as folhas de pagamento. O piso nacional dos professores do ensino básico, hoje de R$ 1.451, subirá 21,8% em janeiro, se o Congresso mantiver a Lei n. 11.738/2008 inalterada. O Projeto n. 4.924/2009 institui piso nacional de R$ 4.650 para enfermeiros. Outra proposta em análise na Câmara encurta para trinta horas a jornada de profissionais de enfermagem.
Enquanto isso, a União e os estados delegam mais responsabilidades. Manutenção de creches federais, transporte para as escolas estaduais e abastecimento das viaturas policiais se incorporaram à rotina. Cada equipe do programa Saúde da Família, com médico, enfermeiro e auxiliar de enfermagem, custa em média R$ 35 mil por mês. Desse valor, vêm do ministério apenas R$ 9 mil. Cada criança em uma creche em tempo integral requer R$ 600 mensais, mas o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) só destina um terço dessa quantia.
Da minguada receita municipal, em média 11% é consumido por gastos feitos em lugar do estado e da União, aponta o recém-concluído levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Como o orçamento já compromete 25% para a educação e 15% para a saúde, a aritmética não tem como fechar. Por isso, a CNM chamou a atenção para a Proposta de Emenda à Constituição n. 458/2010. Se aprovada, ela tornará obrigatória a aplicação de pelo menos 3% em cultura. Com mais esse valor, ficariam 43% dos recursos comprometidos. Restaria ao prefeito apenas 57% da verba para pagar servidores e investir em saneamento, habitação e assistência social, por exemplo.
É inegável o valor da cultura e da preservação do patrimônio público, mas não compete à legislação federal determinar aos municípios percentuais de prestação de serviços públicos. É preciso levar em conta as reais possibilidades da comunidade e respeitar a organização estabelecida pela legislação local.
As amarras legais estrangulam a administração municipal. Uma sintonia perversa: quando o prefeito sofre a pressão para assumir encargos impossíveis de realizar, cresce a fiscalização sobre as tarefas a cumprir.
Há centenas de prefeitos em choque com a Lei de Responsabilidade Fiscal porque assinaram convênio com o governo federal, iniciaram as obras, mas a verba de Brasília ficou só na promessa. A legislação proíbe deixar de herança dívidas sem dinheiro disponível em caixa para quitá-las. Como os municípios têm baixa arrecadação própria e dependem muito dos cofres estaduais e federais, a possibilidade de faltar recursos é ameaça constante. Resultado: quem caiu no conto da parceria com a União corre sério risco de ser enquadrado pelo Código Penal.
E por que a Presidência da República sai ilesa? Porque, como tem uma arrecadação (bem) mais robusta, dispõe de reserva em caixa para fazer os pagamentos quando julgar mais conveniente. Intensifica-se um processo das últimas décadas, o de repassar os serviços, mas não as verbas. A forma como foi introduzido o atual Código de Trânsito, de 1997, ilustra essa tendência. Com a nova legislação, os congressistas deslocaram o gerenciamento do trânsito do governo estadual para o municipal, mas mantiveram o reparte do imposto sobre veículos em 50% para o estado, em vez de aumentar a proporção do município.
Medidas como essa aprofundam o paradoxo da arrecadação. Os 5.563 municípios, embora sejam cada vez mais relevantes para o cidadão, representam só 6% do bolo dos impostos recolhidos no Brasil. Um de cada quatro nem sequer tem arrecadação própria e, portanto, depende dos repassesdo Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Em 2010, os tributos recolhidos no país somaram R$ 1,3 trilhão. Dessa quantia, só R$ 78 bilhões vêm de arrecadação própria municipal. Quando se acrescentam transferências como as do FPM e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o índice pula de 6% para 15,5%. Ainda é muito pouco.
Pressionar para refazer as fatias, em busca de uma distribuição mais justa, é uma das principais missões dos eleitos. É uma luta ingrata, turvada pela desinformação e por discursos feudais.
Consciente da urgência de atacar essa disparidade, a CNM tomou a frente no combate às distorções envoltas em uma das mais promissoras fontes econômicas no Brasil, os royalties. Concebeu uma proposta, já aprovada no Senado, mas tratada sem prioridade na Câmara. Ela tem sido alvo de discursos tortuosos, surreais e, sobretudo, tacanhos.
Para perceber o tamanho da desigualdade, basta um cálculo simples. Dez municípios (nove do Rio de Janeiro e um do Espírito Santo) recebem metade de toda a arrecadação municipal relativa à produção de petróleo, enquanto os outros 5.553 dividem o restante. Faz sentido?
A nova regra, à espera da conscientização dos deputados, ainda mantém vantagem para cidades favorecidas pela geografia – próximas de regiões produtoras –, mas recupera o bom senso. Em vez de metade do bolo, as dez ficam com um quarto. Não é pouco, ainda mais considerando as perspectivas da camada pré-sal, em fase inicial de exploração.
Fortalecer a receita é indispensável para dar conta de todas as cobranças. O prazo para transformar lixões em aterros sanitários termina em 2014. Quantos já resolveram isso? Só 36%. E também será obrigatória a coleta seletiva. Quanto é necessário para fazer? Como se faz? São perguntas a ser respondidas em tempo recorde pelos próximos administradores.
Para aqueles gerentes desastrados e de espírito conformado, há uma armadilha montada. Estão sujeitos a passar os próximos quatro anos no convívio de queixas da população, vítima dos serviços empurrados por outras esferas da administração pública, e laurear o final da jornada de lamúrias com uma condenação na Justiça. Porque certamente descumpriram algum item da quilométrica lista de obrigações do administrador municipal.
E pode até parecer injusto. Afinal, terão sido punidos apenas por serem humanos, quando se esperava deles a habilidade de super-heróis.
Paulo Ziulkoski é presidente da Confederação Nacional de Municípios.
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