sábado, 28 de setembro de 2024

Resenha de Neoliberalismo Autoritário

 A resenha de Neoliberalismo Autoritário: A Racionalidade que Gerou o Bolsonarismo, publicada no site da ANPOF em 15 de setembro de 2024, foi escrita por Dalmo Buzato, linguista e pesquisador da UFMG, e Thomaz de Castro, doutorando e professor de Comunicação Social também pela UFMG. O texto analisa as principais ideias do livro, destacando a conexão entre neoliberalismo e autoritarismo no Brasil e seu papel na ascensão do bolsonarismo. Para acessar a resenha no site da ANPOF, clique aqui.  

O lançamento da obra acontecerá no XX Encontro Nacional da ANPOF, entre 30 de setembro e 4 de outubro de 2024, em Recife, Pernambuco. O evento, considerado o maior da filosofia no Brasil, será realizado nas dependências da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco, reunindo acadêmicos para discutir temas filosóficos de relevância global.



Neoliberalismo autoritário: A racionalidade que gerou o bolsonarismo  

Dalmo Buzato Linguista e pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 

Thomaz de Castro Doutorando pela UFMG; professor e pesquisador de Comunicação Social 

25/09/2024


Nesta resenha apresentamos o livro “Neoliberalismo autoritário: a racionalidade que gerou o bolsonarismo”, de Alisson Diego Moraes, lançado pela Editora Dialética em 2023, obra que resulta da dissertação de mestrado em Ciências Sociais pela PUC-MG do autor. Trata-se de uma análise das potenciais relações entre tendências autoritárias e o neoliberalismo no Brasil da última década. Digna de nota é a experiência pessoal do autor, político mineiro com duas décadas de experiência na gestão pública, além de intelectual comprometido com a reflexão sobre as características da política brasileira contemporânea.  

A inquietude do autor com as jornadas de junho de 2013 e a sua vivência como ator executivo político levaram-no a adentrar as nuances do neoliberalismo à brasileira, que por sua vez converge frontalmente com o histórico autoritarismo nacional, que reúne racionalidade econômica e militarismo para garantir a implantação do regime neoliberal enquanto projeto de estruturação da sociedade: esta conjunção de variáveis é histórica na América Latina, indo do advento da experiência chilena com Pinochet até o momento presente, e pré-condição para o bolsonarismo, que representa um movimento político autoritário convergente com os aparelhos de segurança formais (forças armadas e policiais) e informais (milícias e a Bancada da Bala) no Congresso Nacional – observado também a articulação destas com os setores conservadores, religiosos e ligados ao agronegócio.  

Logo, o objetivo central dessa obra é analisar quais e como se dão, no Brasil, as conexões sociopolíticas e ideológicas entre o neoliberalismo e o autoritarismo, e como esse somatório se condensa na figura de Bolsonaro, que se viabiliza pelo processo histórico global de esgarçamento das instituições democráticas a partir de dentro, sem rupturas violentas como a de 1964 (ainda que esteja em curso um processo judicial para apurar a culpabilidade dos envolvidos com a ‘Minuta do Golpe’ de 2022) e amplamente apoiado nos meios digitais para conectar o líder aos seus apoiadores. E, para tanto, o autor explora o neoliberalismo e seus veios autoritários no Brasil desde seu nascedouro e passando por um panorama histórico dos governos iniciais da Nova República, o governo FHC e o neodesenvolvimentismo dos quase 16 anos do PT, para enfim culminar na expressão do neoliberalismo autoritário por meio do golpe de Dilma Rousseff e seus desdobramentos na eleição de 2018.  

Portanto, o autoritarismo pragmático neoliberal vem se instalado com a garantia de supostos benefícios imediatos materiais difusos em toda a sociedade, baseado num populismo (entendido, grosso modo, como uma redução da política a um discurso de dualismo entre um povo versus uma elite corrupta) que corrói a democracia liberal e combate a mediação das instituições e do ordenamento jurídico com o cidadão, de forma oportunista para suas causas e dizendo advogar legitimamente por uma suposta autêntica vontade popular. Esses partidos têm conseguido na atualidade o aporte de parte do centro ideológico, e pesquisas em seis países sugerem que os eleitores jovens consideram menos essencial “viver numa democracia” do que obter as condições imediatas de sobrevivência diante de cenários de desemprego, crise do bem estar social e das políticas sociais como um todo, dentre outros fatores, que no conjunto condensam as frustrações com a representação política inerente à democracia liberal.  

Resta inexorável a conclusão de que vivemos um retrocesso democrático potencializado pelas novas tecnologias que promovem comunicações a um só tempo massificadas e desreguladas, operando não só na brecha da lei como também à margem dessa quando existe. Portanto, a reflexão promovida por esta obra é bastante relevante por se encaixar no cenário atual de participação de figuras autoritárias, populistas e neoliberais não só no Brasil como em todo o mundo, ainda que focada na transformação histórica do pensamento reacionário nacional, que estará na arena quando das eleições municipais desse ano de 2024.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Um sofista aloprado: Pablo Marçal e o eco de uma sociedade desesperada

* Artigo originalmente publicado no Portal Sagarana Notícias em 22/09/2024 - disponível neste link


O voto de protesto, uma característica recorrente na história política do Brasil, sempre encontrou terreno fértil em momentos de crise e desencanto popular. Não é demais lembrar que o país elege, de tempos em tempos, figuras como o humorista Tiririca, que ironicamente utilizou como patético slogan de campanha o "pior que tá, não fica". O eleitor brasileiro tem recorrido ao voto contestatório como uma forma de manifestar sua insatisfação com o status quo, o establishment político nacional. Seria justo, se não fosse tão tragicômico.

Essa prática escancara uma profunda (e até compreensível) frustração com a incapacidade das instituições políticas de responderem eficazmente às demandas populares e tem gerado uma sucessão de personagens excêntricos que emergem no cenário eleitoral com promessas lastimavelmente simplistas, vazias e/ou inflamadamente retóricas.

Isso é mais velho do que andar para trás, como ouvi muitas vezes em Itaguara. O "novo já nasce velho", parafraseando a canção de O Rappa, reflete bem a constante reciclagem de discursos vazios que presenciamos ao longo da história política. Desde a Grécia antiga, a política tem sido palco de retóricas que se distanciam da racionalidade e da verdade, utilizadas apenas para manipular e convencer, mesmo quando esses discursos são desprovidos de substância ou dignidade.

Górgias de Leontini, um dos sofistas mais influentes de sua época (século V a.C.), afirmava que "o poder da palavra é capaz de enganar até os mais sábios". Ele compreendia que a retórica, quando habilmente utilizada, subjugava a verdade e dominava as massas, sem a necessidade de se apoiar em princípios verossímeis ou éticos. O que observamos hoje, portanto, não é nada novo. São ecos de uma prática antiga — a manipulação prevalece sobre a honestidade, e a forma se sobrepõe ao conteúdo. O que se vê atualmente é a prática de Górgias nos tempos da teatralidade, dos palcos midiáticos e das fake news, uma verdadeira "Era do Espetáculo", como tão bem expressou Guy Debord (1931-1994).

No entanto, essa "Era do Espetáculo" que Debord antecipou é agora amplificada pelo neoliberalismo, que esvaziou a política de sua substância e reduziu o Estado a um mero gestor econômico. A lógica neoliberal, ao enfraquecer a capacidade estatal de prover serviços e responder às necessidades mais básicas da população, criou as condições ideais para a ascensão de líderes que, ao invés de oferecer soluções concretas, utilizam-se de retórica simplista e inflamadora para preencher o vazio deixado pela política tradicional. O desmonte do Estado é, de certa forma, o pano de fundo de uma crise de representação que encontra no voto de protesto seu sintoma mais evidente.

Pablo Marçal é apenas mais recente exemplo desse fenômeno. É um discípulo despreparado da famigerada escola anti-socrática de Górgias. No entanto, diferentemente de figuras como Tiririca, cuja candidatura era pautada na crítica ao sistema político por meio do humor, Marçal representa um novo tipo de sofista: efetivamente despreparado, mas incrivelmente astuto em explorar as brechas e carências de uma sociedade ávida por alternativas políticas e exausta após anos de sofrimento diante de inércias e impotências do poder público. Sua ascensão rápida e inesperada para analistas políticos desatentos é, na verdade, um claríssimo sintoma de uma crise muito mais ampla e profunda, caracterizada pela desilusão com os tradicionais mecanismos de representação, somada à incapacidade de um Estado cerceado pela ambiência neoliberal de prover minimamente as carências básicas da população. Essa "janela de anti-oportunidades" esteve escancaradamente aberta para que lideranças oportunistas e carismáticas, como Marçal, se utilizassem da sedutora retórica do marketing digital e da economia da atenção para canalizar o descontentamento popular, criando uma narrativa que, embora vazia de soluções concretas, é eficaz em mobilizar emoções e atrair seguidores desiludidos.

Nessa lógica, vale também lembrar o papel que as redes sociais desempenham como plataforma privilegiada para a manipulação emocional. A economia da atenção, amplificada pelo algoritmo que premia o sensacionalismo e a polêmica, criou um ambiente fértil para sofistas contemporâneos. Nesse cenário, as fake news se tornaram armas poderosas, permitindo que figuras como Marçal transformem a desinformação em capital político. A regulação da mídia e das redes sociais, portanto, torna-se uma necessidade urgente para evitar que o debate público seja sequestrado pelo caos e pelo populismo digital.

Vale lembrar que o termo “sofista”, que remonta à Grécia Antiga, refere-se a um grupo de pensadores que eram mestres na arte da retórica e da persuasão, sem qualquer compromisso com a realidade fática. Na época, os sofistas eram criticados por filósofos como Sócrates e Platão, que os acusavam de mercantilizar o conhecimento e distorcer a verdade em benefício próprio. Essa crítica parece ressoar fortemente na figura de Marçal, que, assim como os sofistas de outrora, se utiliza de um discurso manipulado para vender uma imagem de sabedoria e sucesso, sem, contudo, possuir a substância que justifique sua influência.

Entretanto, ao contrário dos sofistas clássicos, que possuíam uma técnica refinada de argumentação, Marçal recorre a estratégias vulgares e simplistas, reminiscentes do que na cultura da internet contemporânea se conhece como a “síndrome do pombo enxadrista”. Essa expressão, que surgiu a partir de um comentário feito em 2005, descreve o comportamento de alguém que, sem argumentos substanciais, desestabiliza o debate com atitudes ofensivas, derruba as peças do tabuleiro e ainda sai cantando vitória. Em outras palavras, trata-se de uma técnica inferior de debate, onde, ao invés de se engajar em uma discussão construtiva, o indivíduo recorre a falácias e provocações, proclamando-se vencedor de um embate que nunca foi, de fato, travado.

Essa “síndrome do pombo enxadrista” não é apenas uma tática de Marçal, mas sim a essência de sua estratégia política. Ele transforma o debate público em um jogo no qual as regras tradicionais são desprezadas em favor do "caos controlado" - o importante nunca será o conteúdo, mas a capacidade de gerar polêmica e engajamento. Marçal, ao encarnar essa postura, desvirtua o debate político e subestima a inteligência do eleitorado ao reduzir questões complexas a slogans vazios e a promessas ilusórias. Seu comportamento, amplificado pela natureza efêmera e superficial das redes sociais, transforma o processo político em um espetáculo grotesco, no qual a substância é substituída pelo barulho, e a retórica vazia pelo oportunismo.

O sucesso de Marçal, no entanto, não se deve apenas às suas habilidades de auto-promoção. Ele é o produto de uma sociedade que, esgotada por anos de promessas não cumpridas e desilusões políticas, e impossibilitada de encontrar no Estado neoliberal uma resposta efetiva para suas necessidades básicas, se agarra a qualquer alternativa que pareça oferecer uma saída do ciclo de sofrimento e desesperança. Em um contexto onde o poder público falha repetidamente em atender às necessidades mais fundamentais da população, figuras como Marçal encontram eco em um eleitorado que já não sabe em quem confiar e vê na ruptura radical com o sistema uma possível solução.

O que essa ascensão populista revela é que não estamos apenas diante de um problema individual, mas de uma falha estrutural nas bases do Estado neoliberal. Quando o Estado é esvaziado de seu papel de provedor, as brechas deixadas são rapidamente ocupadas por oportunistas que oferecem soluções rápidas e simplistas. Assim, o neoliberalismo cria o terreno perfeito para o populismo, pois ao deixar de atender às necessidades da população, abre espaço para narrativas messiânicas que prometem a salvação sem o devido preparo ou competência.

Marçal, porém, é um sintoma, não a cura. Sua ascensão é um alerta sobre o estado crítico de nossa democracia e a urgência de se repensar as bases de nossa representação política. O voto de protesto que o impulsiona é, em última análise, um grito de socorro de uma sociedade que clama por líderes que sejam, de fato, preparados e comprometidos com a verdade, e não meros vendedores de ilusões. A analogia com os sofistas da Grécia Antiga se revela aqui não apenas como uma crítica à superficialidade, mas como um alerta sobre os perigos da manipulação do discurso em um cenário democrático.

O filósofo alemão Jürgen Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, destaca a importância de um discurso racional e transparente para a manutenção de uma esfera pública saudável. Para Habermas, a verdade e a legitimidade só podem emergir em um ambiente onde os interlocutores estão comprometidos com a sinceridade e a busca pelo entendimento mútuo, algo que está ausente na prática política de Marçal. O sofista moderno, ao contrário, se vale da manipulação emocional e da dissimulação para ganhar vantagem, corroendo os fundamentos do discurso democrático.

Nesse sentido, a educação política e o fortalecimento das instituições democráticas tornam-se ferramentas essenciais para combater o avanço de sofistas modernos. Somente com um eleitorado mais consciente e instituições mais transparentes será possível barrar o ciclo vicioso de desinformação e manipulação. A sociedade precisa se armar com o conhecimento, não apenas como defesa contra demagogos, mas como um meio de restaurar a confiança no processo democrático e evitar que figuras como Marçal prosperem em um cenário de caos.

A história já nos mostrou os perigos de se entregar o poder a demagogos. Cabe agora à sociedade, e principalmente às instituições democráticas, a tarefa de desmascarar os sofistas contemporâneos e oferecer alternativas reais que resgatem a confiança do povo no processo democrático. Enquanto isso não acontece, figuras como Pablo Marçal continuarão a surgir, explorando o desespero popular e perpetuando um ciclo vicioso de desinformação e charlatanismo.

Para além da crítica, o caminho está na reconstrução de uma esfera pública onde o debate seja racional e as promessas sejam baseadas em projetos concretos. O engajamento cívico consciente, aliado à reforma das práticas eleitorais e ao combate à desinformação, pode transformar o cenário político. Em tempos de crise, a filosofia nos lembra da importância de questionar, de buscar o conhecimento e de valorizar a verdade. Somente através dessa busca constante é que poderemos superar os sofismas modernos e construir uma sociedade mais justa e esclarecida. O desafio é grande, mas o compromisso com a verdade e com a racionalidade no discurso público é a única saída para evitar que a política se torne um tabuleiro de xadrez devastado por pombos enxadristas.


Referências Bibliográficas

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

GÓRGIAS DE LEONTINI. Oração Fúnebre. In: Discursos. São Paulo: Hucitec, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa: Racionalidade da Ação e Racionalização Social. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

STF e emendas impositivas: um debate sobre transparência orçamentária

* Artigo originalmente publicado no Conjur em 26/08/2024 - disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-26/stf-e-emendas-impositivas-debate-sobre-transparencia-orcamentaria/ 


No último dia 16 de agosto, o ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), proferiu uma decisão monocrática que impactou o cenário político e orçamentário brasileiro. Em resposta a três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 7.688, 7.695 e 7.697) movidas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o ministro suspendeu a execução de todas as emendas parlamentares impositivas até que o Congresso estabeleça regras que garantam a transparência e a rastreabilidade desses recursos. A decisão é significativa tanto pelo impacto imediato, quanto pelo que revela sobre a necessidade de reformulação dos mecanismos de controle e fiscalização do orçamento público no Brasil. 

As emendas impositivas, especialmente na modalidade conhecida como “emenda Pix”, têm sido objeto de intensos debates. Criadas pela Emenda Constitucional nº 105/2019, permitem a transferência direta de recursos da União para estados, municípios e o Distrito Federal sem a necessidade de convênios, o que, na prática, dificultou a fiscalização e abriu brechas para a má utilização dos recursos públicos. O ministro Flávio Dino, em sua decisão, enfatizou que a discricionariedade conferida aos parlamentares na indicação desses recursos não pode se transformar em “arbitrariedade”, desconsiderando os princípios constitucionais que regem a administração pública, conforme estabelecido no artigo 37 da Constituição. 

A decisão de Dino foi ainda mais além ao determinar que a Controladoria-Geral da União (CGU) realizasse uma auditoria em todas as emendas Pix executadas em 2024, além de uma verificação dos repasses realizados desde 2020. Essa medida visou a mapear e corrigir possíveis irregularidades. Em sua decisão, clara e direta, o ministro asseverou: 

Nesse sentido, deve-se compreender que a transparência requer a ampla divulgação das contas públicas, a fim de assegurar o controle institucional e social do orçamento público. Por sua vez, a rastreabilidade compreende a identificação da origem e do destino dos recursos públicos. Sobre o ponto, aliás, destacou o Min. Roberto Barroso em voto proferido na ADPF nº. 854, que “em uma democracia e em uma república não existe alocação de recurso público sem a clara indicação de onde provém a proposta, de onde chega o dinheiro” (e-doc. 369 da ADPF nº. 854). (Min. Flávio Dino, ADI nº 7688, 2024) 

A decisão monocrática gerou uma reação imediata no Congresso Nacional, com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, recorrendo ao presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, pedindo a revisão da liminar. Eles argumentaram que as decisões monocráticas, proferidas fora de um contexto de urgência, transcendiam o debate sobre a falta de transparência das emendas Pix e atingiam de forma exorbitante outras modalidades de emendas, como as de comissão. 

Barroso, no entanto, negou o recurso e manteve a liminar de Dino, reiterando a necessidade de que o plenário do STF se pronunciasse sobre a questão. Em sessão virtual extraordinária realizada no próprio dia 16 de agosto, os 11 ministros do STF votaram por unanimidade pela manutenção da suspensão das emendas impositivas até que o Congresso editasse novas regras de transparência.

Após uma intensa mobilização política que se seguiu à decisão, menos de uma semana depois houve uma reunião na Presidência do Supremo. Ocorrido no dia 20 de agosto de 2024, o encontro contou com a presença dos presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados, além do ministro da Casa Civil, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República. Com a participação de todos os ministros do STF, a reunião teve como objetivo central estabelecer um consenso sobre a necessidade de implementar critérios rigorosos de transparência, rastreabilidade e correção na execução das emendas parlamentares impositivas. 

Após horas de deliberações, foi acordado que as emendas individuais de transferência especial (emendas Pix) seriam mantidas, mas com a imposição de que haja uma identificação antecipada do objeto e a concessão de prioridade para obras inacabadas, além de uma prestação de contas rigorosa perante o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU). Também foi decidido que as emendas de bancada deverão ser destinadas a projetos estruturantes nos estados e no Distrito Federal, enquanto as emendas de comissão serão voltadas para projetos de interesse nacional ou regional, definidos em comum acordo entre o Legislativo e o Executivo. 

Princípios orçamentários e a necessidade de transparência 

O contexto das emendas impositivas e a decisão do STF devem ser compreendidos à luz dos princípios que regem o direito financeiro e, mais especificamente, o processo orçamentário. José Afonso da Silva, em seu clássico “Curso de Direito Constitucional Positivo” [1], esclarece que “os princípios orçamentários foram elaborados pelas finanças clássicas, destinados, de um lado e principalmente, a reforçar a utilização do orçamento como instrumento de controle parlamentar e democrático sobre a atividade financeira do Executivo, e de outro lado, a orientar a elaboração, aprovação e execução do orçamento” (SILVA, 2013, p. 75). Dentre esses princípios, destacam-se a exclusividade, a universalidade, a unidade, a anualidade, a programação, o equilíbrio orçamentário e, sobretudo, a transparência [2]. 

O princípio da transparência é essencial para assegurar que o orçamento público seja gerido de maneira clara e acessível, permitindo que a sociedade acompanhe e fiscalize a aplicação dos recursos públicos. A diretriz é reforçada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que, em 2015, publicou um conjunto de dez princípios orçamentários voltados para a boa governança [3]. 

O documento ressalta que a efetivação da transparência orçamentária requer que os relatórios relativos ao orçamento público sejam claros e precisos, com explicações detalhadas sobre o impacto das medidas orçamentárias tanto nas receitas quanto nas despesas públicas. Além disso, esses documentos devem ser publicados de maneira completa e rotineira, conferindo amplo acesso aos cidadãos, às organizações civis e a outras partes interessadas. No Brasil, essa exigência é fundamental para garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira eficiente e em conformidade com os princípios constitucionais. 

A falta de transparência na aplicação das emendas impositivas, especialmente na modalidade Pix, compromete a eficiência da gestão pública e mina a já combalida confiança da população nas instituições democráticas. Embora tenham sido criadas com o louvável objetivo de fortalecer o poder Legislativo e garantir a execução das emendas parlamentares, acabaram por se tornar um instrumento de opacidade e clientelismo, especialmente na modalidade das emendas Pix. 

A suspensão das emendas impositivas pelo STF representou, portanto, uma tentativa necessária para corrigir o desvirtuamento de um sistema que, ao longo dos anos, se afastou dos princípios constitucionais. Se o Congresso se comprometer a editar regras que garantam a transparência e o controle dessas emendas, poderemos estar no caminho para uma gestão menos injusta e ineficiente dos recursos públicos. Se essa oportunidade for desperdiçada, o País corre o grave risco de perpetuar práticas que, historicamente, têm contaminado a democracia brasileira. 

A sociedade, que tem sido reiteradamente lesada por práticas de corrupção e má gestão dos recursos públicos, espera que essa decisão do STF e a sensibilização dos três poderes seja o primeiro passo de uma reforma muito mais ampla, que traga mais transparência, eficiência, maior capacidade de investimentos ao Estado e justiça ao sistema orçamentário do país. Cabe agora ao Congresso demonstrar que está à altura desse desafio, editando regras efetivas que assegurem a correta aplicação dos recursos públicos e que fortaleçam a confiança da população nas instituições democráticas.


Referências 

ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 5. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7688. Relator: Min. Flávio Dino. Brasília, DF, 2024. 

CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. 1. ed. São Paulo: Blucher Open Access, 2020. 

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Recommendation of the council on budgetary governance. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/budgeting/Recommendation-of-the-Council-on-Budgetary-Governance.pdf. Acesso em: 20 ago. 2024. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. P. 75. 

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. P. 75. 

[2] ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 5. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020. 

[3] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Recommendation of the council on budgetary governance. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/budgeting/Recommendation-of-the-Council-on-Budgetary-Governance.pdf. 


segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Sombra do Extremo: A Ascensão da Extrema-Direita na Europa e as Ameaças ao Estado Democrático de Direito no Brasil

* Artigo originalmente publicado no Conjur em 30/06/2024.

Alisson Diego Batista Moraes[1]

 

"A democracia não morre com um estrondo, mas com um sussurro." 

(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 9).

 

Em 2018, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram Como as Democracias Morrem, um livro que rapidamente se tornou um best-seller ao expor com clareza perturbadora como as democracias liberais são frágeis e podem desmoronar não por meio de golpes dramáticos, mas mediante um processo lento e silencioso interna corporis. A obra revela como líderes eleitos podem minar as instituições que sustentam a democracia, subvertendo os processos que deveriam protegê-la.

Na época, a obra já soava um alarme sobre a fragilidade das democracias, especialmente após as vitórias eleitorais de Viktor Orbán, Narendra Modi, Rodrigo Duterte, Benjamin Netanyahu, Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro. Nem mesmo os autores, no entanto, poderiam prever que apenas seis anos depois a situação global se tornaria ainda mais desafiadora, mesmo que Bolsonaro e Trump não estejam no comando de seus países. Em 2024, as democracias liberais continuam na berlinda, enfrentando dificuldades crescentes na Europa e em outras partes do mundo. As recentes eleições para o Parlamento Europeu, que resultaram no triunfo de partidos de extrema direita em vários países, alarmaram aqueles que viam a Europa como o principal modelo do mundo ocidental.

A Fragilidade Democrática e a Ascensão da Extrema-Direita

Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, destacou durante o Brazil Forum UK 2024 – evento realizado na Universidade de Oxford, no Reino Unido – que "a democracia vive uma prova de fogo com a ascensão da extrema-direita e a captura do sentimento religioso"[2]. Suas palavras ecoam uma preocupação global crescente com o aumento do extremismo e a fragilização dos valores democráticos, um fenômeno claramente observável também na Europa.

As eleições parlamentares europeias exemplificam a dinâmica apontada por Levitsky e Ziblatt, bem como as preocupações ressaltadas pelo presidente do STF em Oxford. Partidos de extrema-direita, valendo-se do descontentamento popular com questões como imigração, crise econômica e percepções de perda de identidade nacional, alcançaram vitórias significativas. Em pelo menos dois países europeus, o crescimento da extrema-direita é ainda mais preocupante.

Na França, o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, emergiu com grande força política, desencadeando uma crise que levou o presidente Emmanuel Macron a antecipar as eleições legislativas nacionais. A expectativa é de que Macron terá de dividir o governo com a maioria extremista nos próximos anos, devido às peculiaridades do regime semipresidencialista francês.

Na Alemanha, a Alternativa para a Alemanha (AfD) expandiu sua presença no Parlamento Europeu. Este crescimento é impulsionado por vários fatores, incluindo a crise energética e a insatisfação com as políticas do governo de Olaf Scholz. A dependência da Alemanha do gás russo e o aumento dos custos de energia abalaram a confiança na liderança de Scholz, criando um ambiente propício para que a AfD ampliasse seu apoio eleitoral. A crise, no entanto, é muito mais sistêmica do que contingencial e configura um cenário de erosão democrática global diagnosticada por pensadores atentos como Adam Przeworski.

Adam Przeworski, em sua clássica obra Crises da Democracia, argumenta que "as crises econômicas não apenas geram tensões sociais e políticas, mas também minam a confiança nas instituições democráticas, criando um terreno fértil para o surgimento de movimentos populistas e autoritários" (PRZEWORSKI, 2019, p. 44). Em tempos de dificuldades econômicas, as promessas simplistas de soluções rápidas por parte de extremistas encontram um público mais receptivo, porquanto menos racional. A crise migratória, por exemplo, tem exacerbado os debates sobre identidade nacional e coesão social – a retórica xenófoba encontra eco em populações que se sentem ameaçadas cultural e economicamente.

A Desconfiança nas Instituições e o Crescimento do Populismo     

A desconfiança nas instituições é um elemento chave que alimenta esses movimentos. Escândalos de corrupção e a percepção de que as elites políticas estão desconectadas das preocupações do cidadão comum criaram um vácuo de confiança. Movimentos de extrema-direita se apresentam como os verdadeiros defensores do povo, desafiando o status quo e prometendo uma "limpeza" do sistema. Neste contexto, a polarização política se intensifica e a desinformação prospera, amplificada pelas redes sociais. A extrema-direita tem se mostrado especialmente habilidosa em usar essas plataformas para disseminar suas mensagens e mobilizar apoio.

No Brasil, há ecos desse fenômeno global. Embora o ex-presidente Jair Bolsonaro esteja inelegível, o bolsonarismo continua vivo e se constitui como uma força real na sociedade brasileira (AVELAR, 2021, p. 33). Esse movimento se encontra em sintonia com a onda global de ascensão da extrema-direita. A retórica divisiva, a manipulação da pauta moralista e as campanhas de desinformação que caracterizam o bolsonarismo se alinham com as estratégias utilizadas por outros líderes populistas e de extrema-direita. A possibilidade de um retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, mesmo enfrentando sérios problemas judiciais, é um exemplo claro de como essas forças permanecem resilientes e influentes, desafiando a integridade das instituições democráticas em escala global.


O Estado Democrático de Direito sob Ataque

No preâmbulo da Constituição Federal de 1988, afirma-se o compromisso de "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" (BRASIL, 1988). Estes são valores edificantes do Estado Democrático de Direito, pilares sobre os quais o Estado brasileiro e a sociedade devem se sustentar. O preâmbulo não é apenas uma declaração de intenções; ele guia a interpretação de todos os direitos e garantias fundamentais estabelecidos no texto constitucional. À medida que tais compromissos constitucionais não se realizam, a confiança na democracia se esvai.

A extrema-direita ataca precisamente o ideal de Estado Democrático de Direito, previsto no preâmbulo constitucional, subvertendo o conceito de democracia e de liberdade ao rotular, por exemplo, as notícias falsas como “liberdade de expressão”. Ademais, investe contra as instituições de justiça e contra a igualdade, minando os princípios basilares de nossa sociedade. Tal subversão não apenas distorce os valores democráticos, mas também enfraquece as estruturas institucionais que almejam assegurar a justiça e a equidade. A contínua agressão às instituições e a promoção de desinformação corroem a confiança pública e criam um ambiente propício ao autoritarismo, traço característico de todos os partidos extremistas.

Embora na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2076 o STF tenha decidido que o preâmbulo da Constituição não possui eficácia normativa e "não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte", ele serve como uma proclamação dos princípios gerais da Constituição e não pode ser ignorado quanto ao seu valor político e direcionamento da sociedade brasileira. Como desiderato nacional, ele reforça a importância de uma sociedade democrática e pluralista, erigindo valores como o desenvolvimento, a justiça e a igualdade – orientando as interpretações e a aplicação das normas constitucionais em consonância com esses ideais. Quando o país desiste de perseguir esses valores, cedendo, por exemplo, às especulações do mercado e à lógica do rentismo e dos juros escabrosos, a crise da democracia tende a se aprofundar ainda mais, abrindo caminho para que o populismo de extrema-direita se fortaleça.

Bruce Ackerman complementa afirma que, neste momento histórico, "o estado de direito deve ser um baluarte contra a erosão dos direitos fundamentais e das liberdades, mesmo diante de pressões populistas e autoritárias" (ACKERMAN, 2014, p. 40-41). O autor sugere que as instituições democráticas precisam ser flexíveis e adaptáveis para responder eficazmente a novas ameaças sem comprometer os princípios básicos que as sustentam. Neste contexto, é preponderante a ação corajosa das instituições republicanas na defesa do Estado Democrático de Direito, adaptando-se à necessidade restritiva daqueles que, sob o argumento da democracia, pretendem destruí-la.

Democratizar a democracia

A história recente tem demonstrado que as democracias não são destruídas apenas por forças externas, mas muitas vezes são erodidas por dentro quando as instituições não conseguem responder adequadamente aos desafios e quando os cidadãos se tornam apáticos ou desiludidos. A luta pelo fortalecimento do Estado Democrático de Direito é, portanto, uma tarefa contínua que exige o comprometimento – desde as mais altas esferas do governo até cada indivíduo na sociedade. É preciso um esforço coletivo para assegurar que os direitos e liberdades sejam mais do que palavras em um papel, mas realidades vividas no seio da sociedade.

Jürgen Habermas afirma que "a democracia deliberativa é a única forma de garantir que todos os cidadãos possam participar em igualdade de condições na formação da vontade política" (HABERMAS, 1996, p. 103). Assim, fortalecer a democracia é o único caminho para evitar que o populismo extremista se instaure. Promover uma democracia vibrante e participativa exige a colaboração de todos os segmentos da sociedade, fortalecendo a legitimidade das decisões e a confiança nas instituições. Cultivar uma cultura de participação é o verdadeiro antídoto contra o populismo extremista. Cada voz precisa ser ouvida e considerada, assegurando que a democracia não seja apenas uma estrutura formal, mas uma prática viva e inclusiva. Deliberativa essencialmente e não consultiva por formalismo.

Democratizar a democracia é a melhor resposta às crescentes desigualdades e à desconexão entre os cidadãos e as elites políticas. O desgaste da democracia liberal se deu, sobretudo, pela concepção de que democracia se limita ao ato de votar periodicamente e de que “nada muda” estruturalmente. Repensar e expandir os mecanismos de engajamento democrático para ampliar a voz dos cidadãos em todos os níveis de decisão, promovendo a transparência, a responsabilidade e a inclusão é a grande necessidade de nosso tempo e democratizar a democracia é um passo essencial para construir uma sociedade mais justa, igualitária e resiliente frente as ameaças populistas da extrema-direita. Talvez soe um tanto retórico, mas o fato é que para salvaguardar a democracia, precisamos de mais democracia.


Referências

AGÊNCIA BRASIL. Pobreza, imigração e guerra explicam resultado de eleição na Europa. Agência Brasil, 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-06/pobreza-imigracao-e-guerra-explicam-resultado-de-eleicao-na-europa. Acesso em: 23 jun. 2024.

ACKERMAN, Bruce. The Decline and Fall of the American Republic. Cambridge: Harvard University Press, 2014. p. 40-41.

AVELAR, I. Eles em nós: Retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI. São Paulo: Record, 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2076. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 2002. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=2076&base=baseAcordaos. Acesso em: 24 jun. 2024.

CARTA CAPITAL. Macron antecipa eleições na França após vitória da extrema-direita na votação para o Parlamento Europeu. Carta Capital, 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/macron-antecipa-eleicoes-na-franca-apos-vitoria-da-extrema-direita-na-votacao-para-o-parlamento-europeu/amp/. Acesso em: 23 jun. 2024.

HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press, 1996.

LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as Democracias Morrem. São Paulo: Zahar, 2018.

O GLOBO. É grande a chance de a extrema-direita eleger primeiro-ministro na França. O Globo, 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/google/amp/opiniao/pablo-ortellado/coluna/2024/06/e-grande-a-chance-de-a-extrema-direita-eleger-primeiro-ministro-na-franca.ghtml. Acesso em: 23 jun. 2024.

PODER360. Democracia vive prova de fogo com ascensão da extrema-direita, diz Barroso. Poder360, 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/democracia-vive-prova-de-fogo-com-ascensao-da-extrema-direita-diz-barroso/. Acesso em: 23 jun. 2024.

PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

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[1] Advogado, bacharel em Filosofia (UFMG), mestre em Ciências Sociais pela PUC-Minas, doutorando em Ética e Filosofia Política pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Especialista em Direito Constitucional (ABDConst); MBA em Gestão Empresarial (FGV). Atualmente, é secretário de Fazenda do município de Nova Lima (MG) e professor de cursos de pós-graduação em Direito Administrativo do IEC -PUC-Minas. Autor de Neoliberalismo Autoritário (Ed. Dialética, 2023).

[2] PODER360. Democracia vive prova de fogo com ascensão da extrema-direita, diz Barroso. Poder360, 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/democracia-vive-prova-de-fogo-com-ascensao-da-extrema-direita-diz-barroso/. Acesso em: 23 jun. 2024.

sábado, 11 de maio de 2024

Finanças municipais e os desafios do federalismo fiscal no Brasil

* Artigo originalmente publicado no CONJUR em 10/05/2024.

Alisson Diego Batista Moraes


Situação fiscal dos municípios em janeiro de 2024. Fonte: Bacen 



Recentemente, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria com o título "Situação fiscal dos municípios está pior do que há 4 anos e será desafio para novos prefeitos", trazendo à tona uma preocupação premente no cenário federativo brasileiro: as finanças municipais. 

Uma análise dos dados apresentados na matéria revela um cenário bastante preocupante. Em fevereiro deste ano, os municípios acumularam um déficit primário de R$ 14,7 bilhões, um contraste gritante em relação ao superávit de cerca de R$ 900 milhões registrado pouco mais de três anos atrás, no início dos atuais mandatos. Tal inversão dramática evidencia uma rápida deterioração das finanças municipais e revela a profundidade da crise fiscal que assola os entes municipais. 

Após anos de sistemático acompanhamento do cenário fiscal dos municípios brasileiros – tarefa que encaro não apenas como dever de ofício de "tecnocrata fazendário", mas também com o olhar curioso de pesquisador – é notável a completa ausência de planejamento financeiro e orçamentário por parte dos gestores locais. Quando os primeiros sinais de uma crise se manifestam, em vez de adotarem medidas preventivas e buscarem proteção contra a tempestade iminente, a maioria desses gestores permanece inerte, expondo-se à intempérie sem tomar qualquer providência. Além disso, não é por acaso que as finanças municipais estejam piorando justamente quando se aproxima o período eleitoral. É fato que o viés eleitoreiro quase sempre fala mais alto que o senso de responsabilidade – mesmo diante da Lei de Responsabilidade Fiscal e dos tribunais de contas no encalço dos gestores. 

Entretanto, não se pode culpar apenas os gestores locais. Entre os principais fatores da erosão das contas municipais, destaca-se a perda de arrecadação com o ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação), decorrente de mudanças na base de cálculo implementadas no governo anterior, com tonalidades de populismo fiscal e sem quaisquer preocupações com os impactos que as alterações acarretariam nas finanças dos estados e municípios. Essa redução na receita impactou diretamente a capacidade de os municípios financiarem as suas operações, aumentando a dependência de transferências federais e comprometendo a autonomia fiscal. 

O ICMS tem previsão no art. 155, II, da Constituição Federal, e apresenta-se como a principal fonte de recursos financeiros para a consecução das ações governamentais dos estados membros. É importante lembrar que, embora seja um imposto de competência estadual, o artigo 158-IV da Constituição Federal prevê que 25% do total arrecadado com ICMS nos Estados deve ser repartido entre os municípios. Essa divisão segue duas diretrizes: três quartos (75%) são distribuídos com base no valor adicionado nas operações e serviços realizados em seus territórios (VAF), enquanto até um quarto (25%) pode seguir regramentos próprios definidos pela legislação estadual ou federal, dependendo do caso. 

Complementarmente, nota-se um padrão alarmante de expansão descontrolada dos gastos municipais. Entre 2022 e 2023, houve um aumento expressivo de 13,2% nos gastos com pessoal e encargos sociais, totalizando um incremento nominal de R$ 47,6 bilhões. Esse crescimento exponencial, combinado a um aumento mais moderado na arrecadação, resultou no desequilíbrio fiscal evidente nos municípios brasileiros. Em outras palavras, a falta de planejamento, um cenário externo complexo (ou seja, não resultante de ações ou omissões dos próprios municípios) e o viés eleitoreiro de muitos gestores municipais contribuíram para essa situação preocupante. 

Há de se ressaltar que os impactos dessa crise fiscal transcendem as fronteiras municipais e ameaçam respingar na já complicada situação fiscal do governo federal. Isso porque o aumento no volume de empréstimos municipais, garantidos pelo Tesouro Nacional, representa um risco para a estabilidade fiscal do país como um todo. O incremento das dívidas inadimplentes dos estados e municípios, aliado à crescente dependência do governo federal para cobri-las, expõe a fragilidade do sistema financeiro municipal e revela a inadiável necessidade de reformas estruturais na modelagem fiscal da federação brasileira. 

Diante de um panorama que se pode classificar como desafiador, é imperativo que os atuais prefeitos adotem medidas proativas para enfrentar a crise fiscal em curso e que os pré-candidatos a uma cadeira na chefatura do Executivo municipal estejam atentos e pensem em “planejamento” como palavra de ordem. A implementação de políticas de contenção de gastos, o fortalecimento do controle interno e a busca por fontes alternativas de receita devem ser prioridades absolutas para os gestores municipais - e não se deve acusar nenhum gestor que seguir esse receituário de "austericida", porque sem o devido controle financeiro não haverá recursos para custear a máquina e tampouco para se realizar os investimentos mais básicos demandados pela população. 

Um dos aprendizados institucionais para o Brasil é a compreensão de que o federalismo vai além de um mero conceito decorativo na estrutura jurídica do país. Se o governo federal anterior prometeu uma descentralização de recursos sob o slogan "Mais Brasil, menos Brasília", mas falhou em cumpri-la, o governo atual parece reconhecer a necessidade de uma reforma federativa (um grande passo já foi dado com a inédita PEC 45, as bases gerais da Reforma Tributária, aprovada no ano passado). Uma reforma mais ampla deve incluir também uma maior responsabilização dos gestores locais com a celebração de pactos de gestão. Caso contrário, a situação dos municípios tende a se agravar, afetando negativamente o país como um todo. 

Chegou o momento de conceber um planejamento estratégico fiscal para o Brasil, visando ao médio e ao longo prazo. Esse plano deve ser fundamentado em uma arrecadação equilibrada e no controle dos gastos, garantindo, assim, a eficácia das políticas públicas e a execução de investimentos de qualidade. É preciso aprender de uma vez por todas que promover a sustentabilidade financeira é garantir o bem-estar da população. Esse processo deve começar nos municípios, a base da federação, onde as políticas locais têm um impacto direto na vida das pessoas. 

Referências 

BRASIL. Congresso Nacional (2000). Lei Complementar, nº 101, 4 maio 2000. LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal, Brasília, 24 p., maio 2000a. 

BRASIL. Congresso Nacional. Proposta de Emenda à Constituição nº 45, de 2019. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833. Acesso em: 29 abr. 2024. 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 30 abr. 2024. 

LIMA, Bianca; GERBELLI, Luiz Guilherme. "Situação fiscal dos municípios está pior do que há 4 anos e será desafio para novos prefeitos." O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 abr. 2024. Economia. Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/situacao-fiscal-dos-municipios-esta-pior-do-que-ha-4-anos-e-sera-desafio-para-novos-prefeitos/. Acesso em: 02 maio 2024. 

TESOURO - SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Brasília. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/>. Acesso em: 30 abr. 2024.

terça-feira, 12 de março de 2024

Moderação como estratégia para o Governo Lula 3?

Lula discursa na COP27 — Foto: Ahmad Gharabli/AFP


* Artigo originalmente publicado pelo site Sagarana Notícias em 10/03/2024.

O governo Lula 3 tem demonstrado um compromisso importante com a melhoria das condições de vida dos brasileiros. Prova disso é o aumento recorde na renda do trabalho, que alcançou um crescimento de 11,7% em 2023. 

O país testemunhou, em 2023, uma expansão econômica relevante - sob a desconfiança inicial do FMI e de analistas internos -, refletida não apenas nos números do PIB (2,9% de crescimento), mas também na queda do desemprego (a taxa média de desocupação no Brasil fechou o ano de 2023 em 7,8%, a menor desde 2014) e no aumento do poder de compra da população. As políticas implementadas, incluindo o fortalecimento do Bolsa Família (como a criação do “Benefício Primeira Infância”, no valor de R$ 150 por criança de até 6 anos) e o aumento do salário mínimo acima da inflação (aumento de 7%, enquanto a inflação ficou em 3,85% em 203), são testemunhos do compromisso do governo com a inclusão social e a redução da desigualdade. 

Para assegurar que esses avanços sejam duradouros e resultem no apoio contínuo da população ao governo, é fundamental que a comunicação governamental seja mais assertiva e que o presidente adote uma postura menos polêmica em suas declarações. 

Elio Gaspari, em sua coluna deste sábado (09/03) na Folha de São Paulo, compartilhou uma análise semelhante, reconhecendo que o governo Lula tem mostrado um desempenho positivo. O jornalista destaca que o aumento na rejeição nos últimos meses parece estar ligado à narrativa que cerca algumas questões controversas em que Lula se envolve. Gaspari menciona que, embora haja desafios, não se pode atribuir essas questões ao desempenho econômico ou político do governo (os quais ele, inclusive, elogia). Gaspari observa que o presidente Lula parece ter um interesse particular em questões truncadas, como a Operação Lava Jato, e a situação na Venezuela e na Faixa de Gaza [1]. Apesar de elas não terem quaisquer impactos no desempenho efetivo do governo, tais "cascas de banana" (expressão utilizada pelo próprio Gaspari) têm impacto na avaliação governamental, como demonstram as recentes pesquisas de avaliação (Quaest e Atlas [2] e [3]). 

Não é que Lula não deva expressar sua justa indignação com a "carnificina em Gaza" - uma terminologia até mesmo adotada pelo próprio Vaticano em seus comunicados oficiais. O cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, referiu-se a essa situação em 14 de fevereiro, expressando sua veemente reprovação com o que está ocorrendo na região [4]. No entanto, a questão que se coloca é se não haveria uma maneira "menos polêmica" e mais diplomática e moderada para abordar essa questão. Embora não haja uma resposta definitiva para essa pergunta reflexiva e angustiada - que implica em tantas questões de fundo, éticas e humanitárias, sobretudo -, um artigo deve ser o espaço para reflexões sobre possíveis alternativas. 

A moderação pode ser o grande diferencial em um país fortemente e irracionalmente polarizado, no qual os “moderados” - aqueles que não se reconhecem como petistas nem bolsonaristas - representam uma parcela significativa da população, alcançando 11.4%, conforme a pesquisa Atlas divulgada na semana passada. 

O desafio é grande e complexo, mas há caminhos vislumbráveis: optar pela moderação sem perder a parcela que já respalda o governo.  Não é uma receita infalível, mas a tentativa é válida. 


Referências 

[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2024/03/o-lulopetismo-tem-um-problema-lula-30.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha. Acesso em 10/03/2024. 

[2] Disponível em: http://blog.quaest.com.br/wp-content/uploads/2024/03/GENIALQUAESTNACIONALFEV24.pdf. Acesso em 10/03/2024. 

[3] Disponível em: https://www.atlasintel.org/polls/general-release-polls. Acesso em 10/03/2024. 

[4] Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2024-02/tornielli-editorial-parar-carnificina-parolin-30-mil-motos-gaza.html. Acesso em 10/03/2024.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Lula vs. Bolsonaro: Uma análise do primeiro ano de cada governo


Lula e Bolsonaro. Foto: AP Photos

    

    Analisar o primeiro ano dos mandatos de Lula e Bolsonaro é uma tarefa um tanto quanto árdua, mas plenamente viável, considerando a disponibilidade de vários indicadores e análises críticas de diferentes órgãos. Neste texto, realizarei uma breve análise comparativa, utilizando uma seleção de uma centena de indicadores ( de fontes oficiais) apresentados pela Folha de São Paulo e desde 2019 (além de outros dados verificáveis), para contrastar o primeiro ano do governo Bolsonaro com o primeiro ano do governo Lula em 2023.

    Dada a limitação de espaço e a necessidade de concisão, não é possível abordar todos os indicadores individualmente. Portanto, serão examinados indicadores de seis áreas específicas: Economia e Política Fiscal; Saúde; Meio Ambiente; Segurança Pública e Rodovias; Educação e Relações Internacionais. 

    Dentre uma vasta gama de indicadores, o governo Lula apresentou melhorias em 66 deles, pioras em 20 e estabilidade em 13. No primeiro ano de Bolsonaro, foram registrados 58 indicadores com saldo negativo, 41 com melhorias e cinco estáveis. Sem expressar opiniões, os dados são claros: o primeiro ano do governo Lula superou o desempenho do seu antecessor. Vejamos: 

Economia e Política Fiscal 

    No primeiro ano de Bolsonaro, embora tenham sido observadas algumas melhorias em indicadores como inflação e taxa básica de juros (a Selic começou 2019 em 6,5% e atingiu 4,5% em dezembro, a menor taxa desde a implantação do regime de metas, em 1999), houve  problemas em relação à balança comercial e ao déficit nas contas externas (rombo de R$ 218, 3 bilhões - o maior desde 2015). 

    O ministro da Economia, Paulo Guedes, encerrou o ano de 2019 com um déficit de R$ 95 bilhões nas contas públicas, descumprindo flagrantemente a sua promessa de eliminar completamente o déficit no primeiro ano de governo.  O número de brasileiros na informalidade subiu 3,2% no primeiro ano de Bolsonaro, o maior nível desde 2015.Entre os indicadores positivos em 2019, destacaram-se o avanço da Bolsa, que atingiu 115 mil pontos em dezembro daquele ano, além de um aumento do consumo das famílias e a redução do risco-país de 207 para 99 pontos. A taxa básica de juros da economia alcançou 4,5% naquela ocasião. O PIB brasileiro cresceu 1,2% naquele ano. 

    No primeiro ano do governo Lula 3, o país experimentou um crescimento significativo do PIB, impulsionado por políticas voltadas para o mercado interno e pelo setor agropecuário . Importante relembrar que, no final de 2022, o Fundo Monetário Internacional (FMI) havia previsto uma desaceleração na economia brasileira, com um crescimento de apenas 1% em 2023 (alguns analistas internos projetavam um crescimento menor que 1%). Os resultados no primeiro ano, no entanto, foram bastante diferentes com um crescimento econômico de 2,9% e uma taxa de desemprego abaixo de 8%, o menor nível desde agosto de 2014. Ademais, o número de trabalhadores com carteira assinada no país alcançou o maior índice desde janeiro de 2015, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As contas externas, por sua vez, registrarem déficit de US$ 28,6 bilhões,  queda de 40,7% em relação a 2022, último ano do Governo Bolsonaro. 

    Dentre as medidas aprovadas pelo Congresso Nacional em 2023, um duplo destaque: o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária. O primeiro, ao substituir o anterior teto de gastos, estabeleceu uma diretriz clara para a gestão das contas públicas, fornecendo um norte seguro para as políticas econômicas. Por sua vez, a reforma tributária, discutida ao longo de três décadas, despontou como um marco crucial, pois possui o potencial não apenas de simplificar o sistema fiscal, mas também de impulsionar o crescimento econômico. 

    O ponto negativo ficou por conta do resultado deficitário de 230 bilhões nas contas públicas, atribuídos à herança do governo anterior, que não realizou o pagamento de precatórios, além de ter promovido desonerações fiscais por motivações eleitorais. 

Educação 

    O Ministério da Educação (MEC) enfrentou desafios políticos e operacionais em 2019, com a substituição de Ricardo Vélez Rodriguez por Abraham Weintraub, cuja gestão foi marcada por uma postura ideológica agressiva. Os cortes de investimentos resultaram no cancelamento de bolsas de pesquisa e impactaram negativamente a educação básica e superior. Apesar de alguns indicadores positivos, como o aumento das matrículas em creches e escolas integrais, isso foi atribuído a esforços de estados e municípios. 

    De acordo com dados do Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do PNE (Plano Nacional de Educação), em 2019 houve estagnação em várias áreas educacionais e uma clara piora em outras. 

    Positivamente, o número de contratos do Fies (Financiamento Estudantil do Ensino Superior) aumentou em 2019 em comparação com o ano anterior, indicando uma possível ampliação do acesso ao ensino superior. Além disso, o MEC aumentou os repasses para a instalação de banda larga nas escolas, o que pode contribuir para uma melhoria na infraestrutura tecnológica e no acesso à informação nas instituições de ensino. 

    Esses pequenos avanços foram contrastados por uma série de retrocessos como os cortes nos investimentos federais em educação básica. Os gastos com ensino superior também caíram, afetando diretamente as universidades federais, que enfrentaram um congelamento de recursos. 

    Além disso, o governo Bolsonaro abandonou ou reduziu o apoio a programas essenciais para a alfabetização, como o Mais Alfabetização e o Programa Brasil Alfabetizado. Também houve redução nos repasses diretos para as escolas, que afetaram a infraestrutura e o apoio pedagógico oferecido aos alunos. Os recursos também diminuíram para investimentos em obras de acessibilidade e instalação de água nas escolas. 

    Houve, ainda, uma redução na oferta de bolsas integrais e presenciais do Prouni, fundamentais para garantir o acesso à educação superior para os mais pobres. Os cortes também atingiram a pós-graduação, com uma diminuição nas bolsas de pesquisa financiadas pela Capes. 

    O governo Lula, por sua vez, apresentou melhoras em 8 dos 10 indicadores avaliados na área da educação. Além da recuperação orçamentária abrangendo desde a educação infantil até a pós-graduação, foram implementados programas estratégicos, como o incentivo às escolas de tempo integral e o lançamento de um programa anual de R$ 7 bilhões para combater a evasão escolar no ensino médio, por meio do pagamento de bolsas. 

    Os dados do Censo Escolar demonstraram progressos nas matrículas de creche, ensino integral e educação profissional. Em relação à alfabetização, que foi destacada como prioridade pelo ministro da Educação, Camilo Santana, houve adesão de todos os estados e 99,2% dos municípios ao novo programa lançado em junho de 2023. 

    Houve, ainda, melhorias nos investimentos federais no ensino profissional, com um aumento de 4% em relação a 2022. Os investimentos nas instituições federais de ensino superior foram ampliados em 6% em comparação ao último ano do governo Bolsonaro e o governo também aumentou o valor das bolsas de pós-graduação e o número de beneficiários, principalmente nas bolsas de doutorado. Além disso, os recursos destinados à educação em tempo integral foram consideravelmente maiores em 2023 do que no ano anterior. 

Saúde 

    Na área da saúde, no primeiro ano de Bolsonaro houve desempenho positivo em três indicadores de saúde, enquanto oito apresentaram desempenho negativo. Um dos dados negativos foi a diminuição do número de médicos na atenção básica, algo que não ocorria desde 2011, assim como a redução de agentes comunitários de saúde. A diminuição de médicos se deveu à decisão do governo de não renovar contratos do programa Mais Médicos, o que refletiu a diminuição dos atendimentos na atenção básica em diversas regiões do país, onde ainda há escassez desses profissionais, conforme apontado à época pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva. 

    Durante o primeiro ano de governo de Lula, houve desempenho positivo em oito dos dez indicadores analisados, com estabilidade em um e desempenho negativo também em um indicador. O único indicador que apresentou piora foi a situação da dengue no país, enquanto a cobertura das vacinas do calendário básico infantil permaneceu estável. 

    Dentre os indicadores positivos, destaque para  o número de médicos da estratégia de saúde da família que passou de 29 mil para 35,6 mil; e o o contingente de agentes comunitários que foi de 287,6 mil em 2022 para 292 mil em 2023. Registrou-se também avanços nos índices de mortalidade infantil e materna: uma queda de 32,2 mil para 30,5 mil mortes infantis e de 69 mil para 62 mil mortes maternas entre 2022 e 2023, respectivamente. 

    Além disso, os números de procedimentos médicos realizados também apresentaram um crescimento importante. Houve um aumento de 714 milhões para 755 milhões de procedimentos, como atendimentos e exames de diagnóstico, entre 2022 e 2023. 

Meio Ambiente 

    Em 2019, os incêndios aumentaram em todas as áreas do Brasil, especialmente no Pantanal, na fronteira com a Bolívia, onde se multiplicaram por seis, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O pior mês para a Amazônia foi agosto de 2019, com 30.901 incêndios, provocando críticas de líderes mundiais. Bolsonaro foi acusado de desmantelar políticas ambientais e de incentivar atividades ilegais, como a exploração de recursos minerais em terras indígenas. O desmatamento na Amazônia atingiu o pior índice em uma década, com 9.700 quilômetros quadrados perdidos entre agosto de 2018 e julho de 2019, de acordo com o INPE. 

    No primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, houve redução significativa no desmatamento da Amazônia e avanços em políticas climáticas. Segundo dados do sistema Deter do INPE, o desmatamento na Amazônia caiu pela metade, indo de 10.048 km² em 2022 para 4.976 km² em 2023, o que representa o melhor resultado para o período desde 2018. 

    Por outro lado, o desmatamento no cerrado aumentou em 41% nos últimos 11 meses, chegando a 7.373,6 km² em 2023. Em resposta, o governo lançou o PPCerrado, uma política pública para combater essa situação. Além disso, foram reativados os conselhos participativos que regem o Fundo Amazônia, possibilitando a retomada de doações e a ampliação de projetos apoiados. 

    O Conama também passou por uma grande reestruturação, ampliando o número de membros e aumentando a participação da sociedade civil. 

Segurança Pública e Rodovias 

    No primeiro ano de Jair Bolsonaro, facilitou-se o acesso às armas de fogo com a publicação de decretos para tornar mais acessível a posse e o porte de armas. Além disso, Bolsonaro enviou ao Congresso um pacote anticrime e um projeto para isentar militares e policiais que cometem crimes durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs). Apesar das controvérsias, em 2019 houve uma redução de 22% nos homicídios dolosos e latrocínios, entre outros crimes. 

    No início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva decretos foram publicados para restringir a emissão de novos registros de armas no Brasil. Isso resultou em uma queda significativa no número de registros, com apenas 28.328 em comparação com os 135.335 registrados no último ano do governo Bolsonaro e os 185.497 em 2021. 

    De acordo com o relatório do Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública) do Ministério da Justiça, o ano de 2023 apresentou uma redução nos casos de homicídios dolosos. Em 2018, foram registrados 48.965 casos, enquanto em 2022 esse número caiu para 38.932 e, em 2023, para 37.602. Em termos de segurança viária, o aumento no número de mortes nas estradas foi um desafio enfrentado no primeiro ano de mandato tanto no governo Lula quanto no governo Bolsonaro. Apesar dos esforços na implementação de políticas de prevenção de acidentes, questões como o descumprimento das normas de trânsito continuaram a contribuir para a trágica estatística de fatalidades. Tanto o ano de 2019 quanto o ano de 2023 apresentaram pioras em relação aos anos anteriores. 

    Em 2019, o número de mortes nas estradas federais em decorrência de acidentes cresceu 1,2% em comparação com 2018, registrando 5.332 óbitos. Em 2023, também houve um aumento, passando de 5.439 mortes em 2022 para 5.615 em 2023, de acordo com os dados da Polícia Rodoviária Federal. 

Relações Internacionais 

    Os primeiros anos dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e Jair Bolsonaro apresentaram diferenças marcantes em suas abordagens de política externa. Lula teve quase quatro vezes mais encontros com líderes mundiais do que Bolsonaro, demonstrando uma forte presença internacional e uma abordagem diplomática robusta. 

    A interação frequente refletiu o foco de Lula em fortalecer as relações internacionais do Brasil e capitalizar questões como o meio ambiente e os direitos sociais. A agenda internacional de Bolsonaro foi muito mais limitada. 

Conclusão 

    Considerando a ampla gama de dados e análises setoriais apresentadas, é evidente que, embora ambos os governos tenham enfrentado desafios distintos, o primeiro ano do governo Lula demonstrou uma abordagem mais eficaz na promoção do desenvolvimento socioeconômico e na efetivação dos direitos sociais e políticas públicas. 

    Apesar da persistente e irracional polarização política que tem caracterizado o Brasil nestes tempos, a preferência dos brasileiros pelo governo Lula em relação ao governo Bolsonaro reflete a avaliação política comparativa das duas gestões. De acordo com uma pesquisa do PoderData de dezembro de 2023, quase metade dos eleitores (49%) considerava o governo de Lula "melhor" do que o de Bolsonaro. Por outro lado, 38% dos entrevistados consideraram o governo atual "pior" que o anterior. Esses números evidenciam que a percepção pública acompanha a análise dos indicadores, pelo menos até agora.